terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Caso Damião Ximenes: Brasil condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos

A condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão da violência e morte do portador de necessidades especiais Damião Ximenes:

http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf

O relato da senhora Irene Ximenes:

Damião Ximenes Lopes, tinha 30 anos, era meigo, compreensivo, de caráter introvertido, de olhar pensativo. Teve vida normal até seus 17 anos de idade. Em 1982 depois de sofrer uma pancada na cabeça, notamos que algo de errado acontecia com Damião. Vez por outra ele falava coisa sem nexo. Algum tempo depois ele foi ficando depressivo. Durante 13 anos Damião vivia meses de crise e meses de vida normal, sendo que no início as crises eram menos frequentes e de curto período. Com o passar do tempo a situação foi se invertendo, as crises eram mais prolongadas e mais frequentes. Em dezembro de 1995 o transtorno mental de Damião teve uma acelerada, e foi levado para a Casa de Repouso Guararapes de Sobral-CE, e internado. Na época eu não pude acompanhar o internamento de Damião. Ele recebeu alta uns dois meses depois, a partir daí, ficou dependente de remédios controlados.
Nunca soubemos como fora tratado naquela Casa de Repouso. Damião era calado, nunca falava de suas experiências pessoais, e nós o poupávamos de relembrar episódios ruins. Para os mais curiosos, que insistiam em saber como era um hospício, ele sem muitos comentários, dizia que era só violência. Nós havíamos decidido nunca mais internar Damião no Guararapes. Pelo fato da péssima assistência sanitária aos pacientes, e relatos de violência.
Em março de 1998, Damião já não suportava os medicamentos, e teve uma recaída. Mamãe o levou para Fortaleza, no mesmo dia ele fez consulta, recebeu medicamento e voltou para casa. Na volta ele passou muito mal, pelo que me foi descrito ele estava impregnado. Era noite. Ele se agitou muito dentro do carro até o motorista perder o controle e bater o carro. Era próximo de Sobral, nesta parada, Damião em seu estado de tormento sai caminhando, sem rumo, e mamãe o perdeu de vista. Aflita, ela saiu pelas ruas pedindo ajuda. Chamaram a polícia para ajudar na busca. Momentos depois, trouxeram Damião amarrado num carrinho de mão, e de lá mesmo o levaram para o Guararapes. Neste segundo internamento eu pude visitar meu irmão. Recordo nitidamente como me senti mal quando entrei naquilo que chamavam hospital psiquiátrico. Nunca vi tanta sujeira, moscas, e pessoas entregues ao lixo. Uns andava completamente nus. No pátio encontrei Damião, estava com roupas limpas, mas quando lhe abracei senti mau cheiro, parecia não fazer higiene corporal diária. Minha mãe dava agrados a cozinheira para cuidar de Damião. E levava tudo para ele, até o papel higiênico, pois o hospital não tinha nada. Não deixei de observar os ferimentos no corpo dele, principalmente nos joelhos e tornozelos. Pedi explicação ao funcionário que estava próximo, ele alegou que havia se ferido numa tentativa de fuga.
Tive vontade de conversar com o médico dele. Dr. Francisco Ivo Vasconcelos, para saber melhor como ele se encontrava, e se já podia receber alta, mas o tal médico não estava presente.
Uma semana depois ele recebeu alta.
Lamento profundamente por não ter acreditado no meu irmão, quando ele disse que o pessoal do hospital era ruim, e dos piores eram os enfermeiros, que batiam nos internos. Achei que ele estivesse com pensamento confuso.
Neste último, Damião não era mais o mesmo, estava mais distante, mais desligado, sem ânimo. Não falava mais em trabalhar, nem sair para se divertir.
Deixou de tomar os remédios porque lhe provocava náuseas. Esta decisão foi ruim, porque ele não estava mais dormindo, e já estava rejeitando alimentação. nestas circusntâncias, mamãe ficou receosa que ele entrasse numa crise e sofresse mais. No dia 01 de outubro de 1999, ela levou para uma consulta no Hospital Guararapes, chegando por volta das 6:00hs, ela não encontrou o médico para lhe atender. Ela pensou que voltando para casa com ele, se seu estado de saúde se agravasse, ela não tinha como contornar a situação. Então, resolveu interná-lo, para que assim, ele recebesse cuidados médicos. Na segunda-feira seguinte, 04 de outubro de 1999, quando ela voltou para fazer visita, foi informada na portaria que ele não podia receber visita, ela se apavorou, e forçosamente entrou chamando por Damião, no pátio ele vinha em sua direção, cambaleando, com as mãos amarradas para trás, roupa toda rasgada, a mostrar a cueca, corpo sujo de sangue, fedia a urina, a fezes e a sangue podre. Nas forças nasais bolões de sangue coagulado. Rosto e corpo apresentavam sinais de ter sido impiedosamente espancado. Caiu nos pés de mamãe. Ele ainda conseguiu falar, numa expressão de pedido de socorro dizia: polícia, polícia, polícia... Ela colocou na boca dele um pouco de refrigerante, ele bebeu com tamanha sede, a sugar até a última gota.
Uma faxineira do hospital contou para mamãe que presenciou tudo, os autores da violência, foram os auxiliares de enfermagem e monitores do pátio.
Mamãe pediu que lhe dessem um banho, para limpar o sangue, ele não mais conseguia se mover, foi preciso três pessoas para levá-lo para o banho. Aflita e chorando, procurou o Dr. Ivo para socorrer meu irmão. Ela pediu: doutor, vá ver meu filho, acho que ele vai morrer. Dr. Ivo respondeu com sarcasmo: vai morrer mesmo, todo mundo que nasce morre. E ele ainda mandou mamãe calar a boca, parar de chorar, que não assistia novela porque não gostava de choro.
De lá mesmo de onde estava, Dr. Ivo receitou um medicamento injetável e entregou para um enfermeiro que estava ao seu lado, para aplicar no meu irmão. Ele não foi ver se o paciente tinha condição de receber aquele medicamento no momento. Nem interessou a ele o pedido de socorro de minha mãe. Em momento algum ele se preocupou com a vida de Damião.
Ela voltou para ver como estava Damião, e o encontrou no chão ao lado de uma cama, de bruços, completamente nu e ainda com as mãos amarradas para trás. Ela quis afagá-lo, mas um enfermeiro recomendou que não o tocasse, pois ele havia tomado uma injeção para dormir.
Ela foi embora para sua casa, que fica na cidade de Varjota, a 72 km de Sobral. Quando chegou em casa, já havia um telefonema do Guararapes pedindo sua presença com urgência.
Eu estava almoçando quando mamãe ligou para mim em pranto, contando-me este angustiante episódio. Mesmo com o coração dilacerado tentei acalmá-la. E pedi que ela esperasse só mais um pouco, que meu esposo iria a Varjota para levá-la a Sobral.
Ao chegarem no Guararapes, mamãe e meu esposo, Airton Miranda, foram recebidos por D. Humberto Lacerda, que passando a mão na cabeça, disse lamentar mas o rapaz tinha felecido. Dr. Humberto entregou o laudo assinado por Dr. Ivo, com "causa-mortis" natural (parada cardio-respiratória).
Fomos à polícia civil dar queixa, e pedir laudo pericial, mas nada adiantou, porque o médico-legista da polícia era também o Dr. Ivo. Mandamos o corpo para fazer necropsia no IML de Fortaleza-CE.
Para aumentado de nossa indignação, o laudo, certamente foi manipulado, pois o resultado do laudo pericial foi: causa da morte indeterminada, e sem elementos para responder.
A partir daquele momento passamos a gritar por justiça.
Temos contado com o apoio da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legistativa-CE, mas de modo especial, tem permanecido do nosso lado o Fórum da luta Antimanicomial.
Depois de várias inspeções naquele manicômio, veio à tona, o mais crítico, o mais bárbaro de toda esta tragédia. Damião não foi a primeira e única vítima. Espancar, torturar, estuprar era uma pratica rotineira dos funcionários do Guararapes. Nossa denúncia ficou fundamentada no relatório da auditoria da Secretaria de Saúde de Sobral, realizada naquela Casa de Tortura.
O caso Damião, não ficou só no Ceará, já é conhecido em alguns lugares do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Não nos cansamos de divulgar, queremos que todos saibam o que pode acontecer dentro de um manicômio.
A casa de Repouso Guararapes foi desativada pelo atual Governo Cid Gomes.
Disponível em http://www.apavv.org.br/casos/D/005.htm

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O que é cláusula de raio?

A cláusula de raio "tem por objetivo impedir que o lojista-locatário se instale em outro estabelecimento que explore o mesmo ramo de comércio a uma certa distância do Shopping Center".


Conferir também: STJ, Acórdão nº REsp 1125661 / DF de Superior Tribunal de Justiça, Primeira Turma, 27 de Março de 2012.

O princípio do deduzido e do dedutível e a crítica ao superdimensionamento dos princípios (Lênio Streck)


1 Sobre o princípio do deduzido e do dedutível:

Processo:
AC 282198 SC 2006.028219-8
Relator(a):
Joel Figueira Júnior
Julgamento:
27/09/2010
Órgão Julgador:
Primeira Câmara de Direito Civil
Publicação:
Apelação Cível n. , de Itajaí
Parte(s):
Apelantes: Arno Dal Ri e outro
Apelado: Transcontinental Empreendimentos Imobiliários e Administração de Créditos Ltda
Apelado: Bradesco Seguros S/A

Ementa

APELAÇÃO CÍVEL. AGRAVO RETIDO. AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. EXISTÊNCIA DE DEMANDA ANTERIOR FUNDADA NO MESMO DESENCADEAMENTO DE FATOS. IDENTIDADE DA CAUSA DE PEDIR REMOTA. PRINCÍPIO DO DEDUZIDO E DO DEDUTÍVEL. TEORIA DA INDIVIDUALIZAÇÃO. COISA JULGADA RECONHECIDA. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO.
Consoante o princípio "do deduzido e do dedutível", todas as alegações e defesas concernentes ao mérito da causa de que dispunham as partes consideram-se deduzidas e repelidas (art. 474 do Código de Processo Civil), operando-se a preclusão maior (coisa julgada) sobre elas, razão pela qual se mostra descabida a sua arguição em nova demanda. Desse modo, em que pese a faculdade de propositura de várias ações com pedidos diferentes fundados na mesma causa de pedir estar amparada pela teoria da consubstanciação, parece mais adequada no sistema jurídico vigente a adoção da teoria da individualização, que preconiza que toda violação ou ameaça a direito subjetivo haverá de ser articulada numa única ação ou em outra demanda conexa, sob pena de perpetuação da lide sociológica. Nessa esteira, se o autor ajuiza uma segunda ação objetivando a satisfação de pretensões fulcradas no mesmo desencadeamento de fatos (identidade da causa de pedir remota) que motivaram a propositura de demanda primitiva cuja sentença já transitou em julgado, há de se reconhecer a existência de coisa julgada em relação aos pedidos posteriores e, por conseguinte, deve o processo ser extinto sem resolução do mérito (art. 267, V, do Código de Processo Civil).
Fonte: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18487627/apelacao-civel-ac-282198-sc-2006028219-8-tjsc


Processo:
APL 43510920098260452 SP 0004351-09.2009.8.26.0452
Relator(a):
Ruy Alberto Leme Cavalheiro
Julgamento:
15/09/2011
Órgão Julgador:
Câmara Reservada ao Meio Ambiente
Publicação:
16/09/2011

Ementa

DIREITO AMBIENTAL AÇÃO DECLARATÓRIA INCIDENTAL PRETENSÃO DE DESCONSTRUIR, POR ALEGAÇÃO DE NULIDADE, AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL TODAVIA, A EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA JÁ HAVIA SIDO EMBARGADA E A SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DOS EMBARGOS TRANSITADA EM JULGADO IMPOSSIBILIDADE DE MANEJAR A AÇÃO DECLARATÓRIA FRENTE À COISA JULGADA ARTIGO 474 DO CPC PRINCÍPIO DO DEDUZIDO E DO DEDUTÍVEL - NEGADO PROVIMENTO.
Não se pode a cada vez, a pretexto de uma nova causa de pedir jurídica (leia-se: remota), pleitear para os mesmos fatos narrados, nova decisão de mérito. O artigo 474 do CPC tem como fundamento evidente impedir a perenização da lide sociológica, coisa que, em tempos de grita pela otimização do Poder Judiciário, ganha ainda mais relevo.
Fonte: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20480043/apelacao-apl-43510920098260452-sp-0004351-0920098260452-tjsp
2 Leitura obrigatória de crítica ao superdimensionamento dos princípios, por Lênio Streck:

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

ARTIGO: ESCRAVIDÃO E BASES DO CÓDIGO CIVIL


A ESCRAVIDÃO NO BRASIL E SUA INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Andressa Solon Borges
Graduada em Letras com habilitação em Língua Francesa e Literaturas (UFRN)
Aluna do Curso de Direito da FARN
Auxiliar Técnica no Juizado Especial Criminal do Distrito Judiciário da Zona Norte de Natal

1 INTRODUÇÃO

Toda e qualquer civilização necessita de um ordenamento de regras para a convivência harmônica entre seus membros. Isso já foi observado até mesmo nas sociedades mais remotas de que se tem conhecimento. Na brasileira não poderia ser diferente, pois os indivíduos naturalmente possuem interesses distintos, que devem ser organizados de forma a evitar o caos e a extinção da sociedade. Eis que surgem as leis com a finalidade precípua de organizar e ordenar seus membros e suas relações.
Há sociedades em que essas leis são acolhidas por seus membros sem necessitar de um documento escrito lhes conferindo validade; já em outras se faz necessário a positivação das normas por assim garantir um maior respaldo de veracidade e legalidade. De acordo com Nélson Godoy Bassil Dower o direito garante a vida em sociedade por seus complexos de princípios e normas.
A Constituição de um País é o documento que serve de base e orientação para a disciplina e criação de outros institutos jurídicos, como o Código Civil, também objeto deste estudo, sendo este classificado como um ramo do direito privado, cujo surgimento deu-se em 1916, dado que o Brasil de 1520 a 1549 era regido por legislações espaças, tais como as cartas de doações, Legislações Eclesiásticas, forais. No que se refere à legislação privada comum, eram aplicadas as chamadas Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que não solucionavam as necessidades da Colônia, embora fossem aplicadas em todo o território nacional, o que originou a promulgação avulsa de leis extravagantes que regulamentavam sobretudo as práticas do comércio.
Embora seja considerada por alguns críticos uma obra notável, que atendia às necessidades sociais da época, é preciso se fazer uma investigação da veracidade dessas afirmações, visto que a sociedade da época não era composta em sua maioria por burgueses, e sim por pobres, mestiços ex escravos, entre outros que não possuíam direitos ou que a lei vigente sequer lhes conferiu qualquer importância ou amparo, dado que começou a ser confeccionado num período em que o sistema escravocrata estava ainda vigente, o olhar da comissão de elaboração do projeto tinha um cunho burguês, ou seja, embora oficialmente não estivesse a sociedade sob o manto da escravidão, ainda se tinha raízes muito fortes sobre esse sistema; ainda se tinha uma concepção muito forte sobre a definição de escravos, logo, eles ainda permaneciam, mesmo com o fim da escravidão, à margem da sociedade.
Sendo assim, é possível se dizer que o Código Civil de 1916 abarcou efetivamente de todas as questões sociais da época? Vislumbrou todos os aspectos vigentes? É possível dizer que somente em 1916 a sociedade necessitou desse instituto legal? É possível dizer que atende aos anseios da sociedade como um todo, dado que a maioria era de negros, sem direitos e sem amparo? Por que se demorou tanto a se elaborar um Código Civil para a época, visto que a Lei utilizada no Brasil antes da primeira constituição elaborada era a Lei 30 de Outubro de 1823, que vigia no país antes da elaboração e confecção das próprias leis do Brasil?

2 DA PROBLEMÁTICA
A discussão desse tema denota a importância de se averiguar a causa do atraso na confecção do Código Civil Brasileiro, bem como se ele refletiu ou reflete a real sociedade e a sua necessidade, visto que as leis são um espelho e um produto dos anseios sociais. É bem verdade que o Direito sempre caminha atrás de tais anseios, porém nesse caso não foi o simples atraso legiferante, causa da vacância legislativa que se viu e se vê hoje no país em relação a alguns institutos (como por exemplo, a lei do direito à greve dos servidores públicos), e sim a difícil tarefa de, no período da confecção do novo Código, enquadrar escravos (seres humanos) como “coisas ou animais”; como deixar de fora pessoas, sem que isso ferisse o próprio conceito de ser humano que se encontra estabelecido no Código Civil? Como aplicá-lo? Como discipliná-lo sem que causasse tormento social e legal? Seria este o ponto de partida do tema acima proposto.
Para se falar sobre o tema proposto, necessário se faz um breve apanhado histórico sobre a questão da escravidão no Brasil, quando começou e até onde perdurou, dado que o país foi um dos últimos a abolir completamente a escravidão do panorama social e político da época. Mesmo assim, após a abolição, ainda perduraram resquícios e suas consequências reverberam até os dias atuais.
Sabe-se que até o final do século XIX ainda ocorriam formações de quilombos e que os negros eram comercializados legalmente, sem qualquer divergência entre aqueles detentores do poder econômico que promoviam a comercialização, diferentemente do que ocorreu com os índios quando os portugueses aqui chegaram, dada a inquietação causada nos colonizadores:
A escravidão dos africanos, já legalizada antes da descoberta do Brasil, foi nele recebida e introduzida como coisa lícita; o comércio dos escravos negros foi natural e suavemente estabelecido para a colônia, e até protegido e promovido pelo governo. (Clarence José de Matos apud Perdigão Malheiros – A escravidão Africana no Brasil).

Nunca se questionou o papel dos escravos na sociedade brasileira, por estar sempre bem definido, ou seja, era uma mercadoria, uma propriedade. Analisando-se um conceito bem elementar vês-se que eram mercadorias, comparados à animais, tinham preço e chegavam, muitas vezes a ser inclusos até em inventários dos senhores de engenho.
Apenas em 1850 foi assinada a Lei Áurea, que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil, mesmo sob o clamor contrário dos latifundiários que se sentiram prejudicados com a perda das suas máquinas de produção. Ainda assim não foi possível dizer que houve contribuição deles para a formação cultural e legal do país. Na visão de Antônio Carlos Wolkmer:
(...) se a contribuição dos indígenas foi relevante para a construção de nossa cultura, o mesmo não se pode dizer quanto à origem do Direito nacional, pois os nativos não conseguiram impor seus mores e suas leis, participando mais na humilde condição de objeto do direito real, ou seja, objetos de proteção jurídica. Igualmente o negro, para aqui trazido na condição de escravo, se sua presença é mais visível e assimilável no contexto cultural brasileiro, a sua própria condição servil e a desintegração cultural a que lhes impelia a imigração forçada a que se viam sujeitos, não lhes permitiu também pudessem competir com o luso na elaboração do Direito Brasileiro.

Houve um momento na história em que o número de negros trazidos da África superou o de brancos existentes no país. Superou até mesmo o número de habitantes locais, chegando à proporção, em meados de 1850, de 3.500.000 negros para 1.500.000 brancos.
Eis que com o fim da escravidão e o início da República, deu-se a necessidade de confecção de leis para garantir proteção às várias classes surgidas no início dessa nova fase. As relações pactuadas entre as pessoas, os comerciantes, a classe trabalhadora assalariada, e os negócios jurídicos firmados necessitavam de proteção jurídica, que até então, não eram garantidas por qualquer meio estatal.
A Lei 3.071 de 01.01.1916, cuja comissão para sua confecção foi criada em 1899 tratou de regulamentar questões relativas à família, propriedade e o contrato. “O Código Civil Brasileiro foi uma obra escrita ainda no século XIX, foi iluminado nessa esteira por um país de ideias coloniais, baseado no trabalho escravo, posteriormente aos valores de uma civilização burguesa, conservadora e formal”. Logo, não se poderia dissociar o aspecto jurídico do social, por ser o primeiro, reflexo do segundo.
A sociedade brasileira à época que antecedeu à confecção do Código Civil era formada em sua maioria por escravos, índios, familiares de proprietários de escravos, pobres, ex escravos e outros menos favorecidos, cujos interesses não foram abarcados pela legislação vindoura, visto que, de acordo com o explicitado por Felipe Camillo Dall’ Alba, “tratava-se de um sistema fechado contendo disposições que interessavam à classe dominante...deixando à margem institutos que não quer ver disciplinados, por exemplo, o direito indígena”. E por que não falar do direito dos negros?
Outro ponto de extrema relevância apresentado pelo pesquisador acima mencionado é a ausência de amadurecimento social da época, mesmo após o fim da escravidão, amadurecimento este que só ocorreu após a 2ª Guerra Mundial, com a industrialização.
Diz-se que o Estado não exercia como deveria o seu papel, pois garantia o direito de apenas uma pequena parcela social: a burguesia. Durante décadas a assistência social, por exemplo, que atualmente é papel do Estado, inclusive disciplinado e regulamentado em leis, face às camadas menos favorecidas, foi desenvolvida de forma filantrópica por instituições ligadas à Igreja Católica. Nenhum direito era garantido pelo Estado da forma como se vê hoje.
Embora se constate uma tentativa maior em se aproximar ricos e pobres, com o advento da Constituição democrática de 1982, não resta dúvida que as leis do país beneficiam a classe mais favorecida e que favorece uma dissolução entre a elite dominante e a outra grande massa da população. Com essa afirmação não se pode dizer que o Código Civil de 2002 também retrata o espírito democrático garantido pela Constituição de 1988, visto que muitos institutos do antigo Código continuaram vigente, apenas com algumas modificações e após as breves considerações feitas já se constatou que seu alvo não eram todos os cidadãos por não ser, nem todos os habitantes do país daquela época, considerados como tal.

3 DA COMISSÃO PARA ELABORAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 (LEI 3.071 DE 01.01.1916)

Com o fim da escravidão e o início da República, deu-se a necessidade de confecção de leis para garantir proteção as várias classes surgidas. As relações pactuadas entre as pessoas, a classe de trabalhadores assalariados e os negócios jurídicos firmados necessitavam de proteção jurídica que até então não era garantida por qualquer meio estatal que refletisse a necessidade local, haja vista que a legislação vigente era as Ordenações Filipinas do Reino que não tinham mais aplicabilidade nem dentro do próprio território luso em razão de novas legislações surgidas.
Na visão de Spencer, sintetizada por Orlando Gomes:
(...) os Códigos devem ser obra de compromisso e transação e, revelando o seu pensamento quanto à imaturidade do meio para incorporar as novas ideias, adverte que as codificações devem ser trabalho de depuração, de condensação, de enfeixamento, de classificação, de metodização e nunca de aventurosos trânsitos por sendas mal desbravadas. No seu entender, o dever do codificador, diante das novas formações, é o de lhes deixar o caminho aberto para que se desenvolvam e preencham a função social a que se destinam.

Ora, diante dessa afirmação e se for traçado um paralelo com a sociedade acima descrita no momento da confecção do Código Civil é perigoso afirmar que os interesses de todas as classes foram ali tratados, além do mais as informações históricas constatam que no Século XIX muitas nações, principalmente as Europeias elaboraram seus códigos e eles foram iluminados pelas ondas vindas da França com a Revolução Francesa, por exemplo, que não foi um movimento organizado por pobres e ex escravos, e sim por burgueses, latifundiários e pensadores da época, que viveram aquela realidade e aquele momento, além de não conservarem o título de país escravagista como o Brasil conservou e conserva.
Pode-se dizer que com tantos anos de comercialização e escravização o Brasil conseguiu um amadurecimento social apenas após a Segunda Guerra Mundial. Essa ideia é bem refletida nas palavras de Orlando Gomes acerca da codificação no nosso direito brasileiro:
O retardamento na organização do Código Civil brasileiro permitiu que esse divórcio entre o Direito teórico e o prático não fosse tão profundo ente nós, como foi em outras nações do continente. Mas, ainda assim, a alienação constituiu frequente recurso do legislador para dotar o país de uma legislação que nada ficasse a dever aos Códigos mais modernos. Em várias disposições, é mais uma expressão de ideias do que de realidades.

4 AS CONSTITUIÇÕES E A LEI PRIVADA

Durante esse processo histórico de exploração econômica e humana, supressão da história do povo oprimido, destruição de seus monumentos, queima de documentos históricos, além da imposição do aprendizado de uma cultura diversa restou para os negros a liberdade aparente, após a abolição com a Lei Áurea (Lei 3.353 de 13 de maio de 1888).
A causa disso foi a inexistência de um campo social e econômico previamente preparado para a grande massa de negros e mestiços dita “livre”. Esses povos somavam um expressivo número de analfabetos sem direitos e a sociedade onde viviam não lhes oferecia lugar em razão de já estar previamente estabelecida e articulada, mantenedora de seus próprios privilégios.
As Constituições que vigeram após o fim da escravidão pouco ou nada tratavam sobre o assunto, no que se refere à concessão igualitária de direitos nas esferas civil, social e penal, já que as que vigeram antes e depois da Lei Áurea se preocupavam com interesses ligados à classe latifundiária e instituía, como na de 1824 até castigos físicos para os negros, conforme a conveniência do seu “dono”.
Em 1946 fala-se do início da efetiva democracia em razão da pregação do princípio de igualdade para todos, porém não explicitava, tal como atualmente, que todos eram iguais perante a lei, independentemente de raça.
Enquanto na Europa já se falava em direitos humanos, direitos fundamentais a realidade local era de uma sociedade escravagista com interesses essencialmente privados.
Orlando Gomes chama atenção para um fato importante: o Brasil importou o modelo democrático da Europa. Porém, a introdução de legislação referentes a matérias acerca de temas sociais não tiveram reflexo no Brasil. A mentalidade dominante conservava o individualismo jurídico, ou seja, prevalecia o que realmente interessava aos detentores do poder.
Sintetizando esse pensamento, ainda nas palavras de Orlando Gomes:
Verifica-se, em suma, na evolução legislativa do Direito privado brasileiro, aquele descompasso entre o Direito escrito e a realidade social (...). O Código Civil colocou-se, em conjunto, acima da realidade brasileira, incorporando ideias e aspirações da camada mais ilustrada da população.

5 CONCLUSÃO

Diante disso conclui-se que o Estado formado pelas mentes legiferantes da época não exerceu seu papel pleno em razão de conferir amparo legal e privilégios apenas a uma pequena parcela social. A grande massa de pobres negros advinda com o fim da escravidão ficou à mercê da sorte, ficando conferido à igreja católica o papel filantrópico de garantir assistência a essa camada menos favorecidas, o que hoje é dever do Estado, promovido pela Assistência Social, direito hoje garantido constitucionalmente.
Impossível se conceber igualdade de direitos em um Brasil que viveu décadas de exploração econômica e humana, cujas estratégias de dominação incluíram dentre outras coisas, a supressão da história do povo oprimido, sendo a abolição considerada uma liberdade duvidosa, já que sem amparo do governo muitos escravos se viram forçados a retornar à casa do seu antigo senhor.
Não é possível acreditar diante desse quadro social e da lei pura confeccionada que houve mudança. Na verdade, a mudança é paulatina e se verifica de forma branda, tal como o fim da própria escravidão, que demorou muitos anos.
Importar um modelo democrático trazido de outro país também não é a forma mais adequada de retratar uma sociedade recém-abolicionista, haja vista que cada sociedade tem a sua própria realidade e como consequência dela, o seu próprio direito.
Logo, é verdade que o Brasil viveu muito tempo sob a égide das leis vindas do país colonizador e viveu, após a construção do Código Civil de 1916 com a impressão de ser ele uma construção genuinamente local, adequada e pensada para essa realidade.
Todavia, se o seu fundamento se espelhou em uma realidade alheia à local, conclui-se que há um descompasso entre as aspirações do povo e o direito escrito, já que o direito incorporou ideias e aspirações burguesas por ter sido iluminado por elas quando importado da Europa com o advento das Revoluções, além de não enquadrar socialmente uma realidade por ela própria criada, que foi a diversidade de raças surgidas no país com a chegada dos negros africanos.
Esse povo contribuiu e fez parte do perfil social tido atualmente. Se tornaram filhos dessa pátria quando aqui chegaram e dela fizeram parte e fazem até hoje com seus descendentes, entretanto em razão da forma como eram considerados (mercadoria de valor e comercialização) dificultaram a feitura de leis locais em razão do difícil enquadramento deles na sociedade (pessoas que não eram pessoas). Se não eram pessoas, o direito, então não lhes serviria.
Assim sendo, a problemática foi esquecida, escondida e postergada por muitos anos, pois se tratava de terreno pantanoso, daí o porquê do atraso na feitura da lei brasileira. Pode até ser que se pretendesse uma neutralidade no tocante à sociedade vigente e os anseios burgueses, mas certamente quando terminado não se limpou do revestimento conferido pela elite, pois já nasceu em mora com a realidade e com ao povo ao qual se destinava.

REFERÊNCIAS
BORGES, Maria de Fátima. Capacitação dos Conselheiros do Conselho Municipal de Assistência Social de São Gonçalo do Amarante-RN: uma contribuição para o fortalecimento do sistema descentralizado da Assistência Social. Monografia. Natal: Faculdade de Ciências, cultura e Extensão do Rio Grande do Norte (FACEX).

DA SILVA, Marco Antônio Marques; MIRANDA, Jorge. Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. 2ª Edição. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2009.

DALL’ALBA. Felipe Camilo. Os três pilares do Código Civil de 1916. Disponível em <HTTP://tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos)>. Acesso em 8/7/2012.

DE MATOS, Clarice José; NUNES, César. Novo Manual de História do Brasil. São Paulo: Ed. Nova Cultural. 1993.

DOWER, Nélson Godoy. Direito e Legislação. 3ª Edição. São Paulo: Ed. Atlas. 1996.
ESCRAVIDÃO. Disponível em <HTTP://pt.wikipedia.org./wiki/escravidão>. Acesso em 08/07/2012.

GOMES. Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil Brasileiro. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006. 
RIBEIRO, Maria Thereza Rosa. Itinerário da Construção do Risco e Segurança na Sociedade Brasileira. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sc_artex&pid=s0102-69922006000300009>. Acesso em 08/07/2012

WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 2 Edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense.