A ESTÓRIA DA
“KATCHANGA REAL” – RECOLOCANDO AS COISAS NO LUGAR OU DE COMO SE
PODE “KATCHANGAR” SEM SE DAR CONTA DE QUE SE ESTÁ “KATCHANGANDO”
– UMA HOMENAGEM A LUIS ALBERTO WARAT.
Lênio Streck
http://www.leniostreck.com.br/site/2012/02/10/a-estoria-da-katchanga-real-por-lenio-streck/
1. Pedi um trabalho
sobre princípios e regras para os meus alunos. Alguns dos papers
vieram com uma estorinha que servia para criticar a ponderação e
uso dos princípios. A estória que apresentaram era a Katchanga
(Real), que, segundo eles, circulava na Internet como. Dias depois,
na Conferência Nacional da OAB, em Curitiba, 2011, depois de minha
palestra, um grupo de estudantes e advogados indagou-me sobre a tal
da história da “katchanga”.
2. Alguns, mais velhos,
já tinham ouvido eu contar essa estorinha há muitos anos atrás.
Pois, como poderemos perceber, mais recentemente a estória da
Katchanga ganhou “novos foros”, longe daquilo que significava
originalmente. Com “C” ou com “K”, os alunos que usaram a
estória tinham a convicção de que, ao se convocarem a estorinha,
estavam sendo altamente críticos…
3. Pois bem. Vou fazer,
aqui, uma espécie de “interpretação autêntica”, para brincar
um pouco com essa palavra. Digo “autêntica” porque faço parte
da história institucional do aparecimento da estória da Catchanga
(ou Katchanga) em terrae brasilis, há muitos e muitos anos. Pode-se
dizer que alguns dos que hoje invocam a metáfora, em sites ou blogs,
ainda não haviam nascido quando a estória começou a ser usada na
teoria do direito.
4. Então… A estória
da Katchanga vem de Florianóplis, Universidade Federal e
alrededores. Quem a construiu foi o saudoso Luis Alberto Warat. Ele a
chamava de “O Jogo da Katchanga…”. Observe-se: Warat falava mal
o português; ele pronunciava Katchanga, com “t”. Como
esclarecerei mais adiante, a estória vem dos “escravos de Jó”,
que jogavam “cachangá”…
5. Discuti em aula e na
minha casa – Warat era frequentador diário, junto com Leonel
Severo Rocha e Sérgio Cademartori (entre outros) – a tal
estorinha, que virou metáfora. É da década de 80. E, depois, nos
anos 90, contei isso em dezenas de conferências.
6. Warat contou a
estória para metaforizar (e criticar acidamente) a dogmática
jurídica. De certo modo, uma estorinha similar corre no Rio Grande
do Sul, envolvendo um jogo de cartas do velho Assis Brasil, figura
política importante nos pagos gaúchos. A Katchanga “Real” dele
era denominada “Farroupilha”. Ele, porque detinha o poder, não
perdia nunca: quando o jogo não tinha saída para ele, ele atirava
as cartas na mesa e gritava: “Farroupilha” (lembremos, aqui,
prontamente – e isso é extremamente relevante para a compreensão
do sentido da metáfora – da decisionista Wille zur Macht de
Nietzsche, que pode ser vista no Oitavo Capítulo da Teoria Pura do
Poder de Kelsen, quando ali ele diz que “a interpretação é um
ato de vontade”; não esqueçamos que Kelsen faz a distinção
entre a interpretação como ato de conhecimento e ato de vontade –
este último é o ato feito pelos juízes; eis o ovo da serpente do
voluntarismo). Observemos como essas coisas têm uma relação.
7. Mas Warat, que,
repito, nunca falou português direito (eu passei do espanhol para o
português os rascunhos do livro Ciência Jurídica e Seus Dois
Maridos e tantos outros alunos faziam essas tarefas cotidianamente
enquanto seus orientandos), contava a estória a partir dos Escravos
de Jó, que jogavam Cachangá… (desnecessário lembrar, aqui, a
cantiga dos Escravos de Jó… – sim, Jó tinha escravos, embora
alguns religiosos digam que não, ao “tucanearem” a palavra
“escravos” por “servos”; mas, em Jó 1:3, lê-se: possuía
sete mil ovelhas (…) e uma grande quantidade de escravos…; de
todo modo – e aqui faço uma broma – isso não tem nenhuma
importância para o que quero discutir!).
8. Warat inventou a
Katchanga Real, adaptando-a, ao que nos contou, de um amigo argentino
(em face da pronúncia, “Cachanga” – que já perdera o caráter
de oxítona – chegou a ser confundida com “chancha” – “porca
real”), para fazer uma crítica à dogmática jurídica. Falo em
Warat e lembro, desde logo, o “monastério dos sábios”, o
“manifesto do surrealismo jurídico” e “por quien cantan las
sirenas” (saudades do gringo; ele chegava lá em casa e perguntava:
hay pan? Logo, pegava um pedaço, ligava o fogão a gás e “assava”
el pan…; escrevia sempre; em qualquer “papelito”; por quien
cantan las sirenas era um amontoado de “hojas” de papel de
cadernos, carteiras de cigarro e até de pão – escritas a mão em
castellano e/ou portunhol!)
9. Afinal, dizia Warat,
“a dogmática jurídica é um jogo de cartas marcadas”. E quando
alguém consegue entender “as regras”, ela mesma, a própria
dogmática, tem sempre um modo de superar os paradoxos e decidir a
“coisa” ao seu modo… Ela, por si, é decisionista, no sentido
da “vontade do poder” (Wille zur Macht). D´onde a Katchanga Real
e o velho Farroupilha são absolutamente similares. Já no imaginário
social isso exsurge claramente. Observe-se: a estória que Warat e
nós desenvolvemos e adaptamos para o direito, naqueles dias, tem
exatamente relação com uma coisa básica: Cachangá (da cantiga)
não é jogo! E, se for, não tem regras! Eis o segredo metafórico.
Lembro, nesse sentido, as palavras do professor Cláudio Moreno: “Se
esse jogo existisse, seria quase impossível explicar como ele passou
despercebido por todos os antropólogos e etnólogos que estudam
nossas tradições populares.”. E Artur Louback Lopes complementa:
“O que pode ter ocorrido é uma espécie de ‘telefone sem fio’:
se originalmente o verso fosse ‘juntavam caxangá’ ao invés de
‘jogavam’, poderíamos pensar em escravos pegando siris em vez de
em um jogo…”. Mais: se nos fixarmos na Cantiga famosa, além do
jogo não ter sentido, também o restante é, por assim dizer,
absolutamente discricionário, como “guerreiros com guerreiros
fazem zig…”. Metáforas, metonímias, “telefone sem fio”,
etc, assim vamos construindo as “coisas” do sentido e o “sentido
das coisas”…!
10. Assim, a “Katchanga
real” é um estória que transformamos em metáfora, com o objetivo
de explicar o papel poderoso (e perigoso) da interpretação do
direito e dos princípios. Lembro a todos: Warat era um analítico da
cepa; nunca foi adepto do realismo jurídico. Isso ele sempre deixou
bem claro.
11. Mas, vamos a
estória: existia um Cassino que aceitava todos os tipos de jogos.
Havia uma placa na porta: aqui se jogam todos os jogos! Isto é, não
havia nada que ficasse de fora do “sistema de jogo” do Cassino.
Tratava-se de um Cassino non liquet (na verdade, vedação de non
liquet). Um Cassino que era um sistema aberto e fechado ao mesmo
tempo (prato cheio não só para hermeneutas, como também para
sistêmicos, como Leonel Severo Rocha, com o qual tantas vezes
discutimos isso – ele, Warat, Sérgio e eu). Poderíamos chamar
esse “sistema do cassino” de uma espécie de “Cassino
Fundamental” (um Grundcassino?)…! De uma forma mais sofisticada,
pressupõe-se que “todos os jogos sejam jogados”, ou algo nessa
linha. As derivações são múltiplas, pois.
12. Pois bem. Chegou um
forasteiro e desafiou o croupier do cassino, propondo-lhe o jogo da
Katchanga. Como o croupier não poderia ignorar esse tipo de jogo –
porque, afinal, ali se jogavam todos os jogos (lembremos do non
liquet) –, aceitou, ciente de que “o jogo se joga jogando”,
portanto, não há lacunas no “sistema jogo”.
13. Veja-se que o dono
do Cassino, também desempenhando as funções de croupier, sequer
sabia que Katchanga se jogava com cartas… Por isso, desafiou o
desafiante a iniciar o jogo, fazendo com que este tirasse do bolso um
baralho. Mais: o desafiado também não sabia com quantas cartas se
jogava a Katchanga… Por isso, novamente instou o desafiante a
começar o jogo.
14. O desafiante,
então, distribuiu dez cartas para cada um e começou “comprando”
duas cartas. O desafiado, com isso, já aprendera duas regras: 1)
Katchanga se joga com cartas; 2) é possível iniciar “comprando”
duas cartas. Na sequência, o desafiante pegou cinco cartas, devolveu
três; o desafiado (croupier) fez o mesmo. Eram as regras seguintes.
15. Mas o
“Grundcassinero” (chamemos ele assim) não entendia o que fazer
na sequência. O que fazer com as cartas? Eis que, de repente, o
desafiante colocou suas cartas na mesma, dizendo “Katchanga”…
e, ato contínuo, puxou o dinheiro, limpando a mesa. O “Grund…”,
vendo as cartas, “captou” que havia uma sequência de três
cartas e as demais estavam desconexas. Logo, achou que ali estava uma
nova regra.
16. Dobraram a aposta
e… e tudo de novo. Quando o “Grund…” conseguiu fazer uma
sequência igual a que dera a vitória ao desafiante na jogada
primeira, nem deu tempo para mais nada, porque o desafiante atirou as
cartas na mesa, dizendo “Katchanga”… Tinha, desta vez, duas
sequências…! Dobraram novamente a aposta e tudo se repetiu, com
pequenas variações na “formação” do carteado. O “doutor
Grund…” já havia perdido quase todo o dinheiro, quando se deu
conta do óbvio: a regra do jogo estava no enunciado “ganha quem
disser Katchanga primeiro”.
17. Pronto. O “doutor”
“Grund…” desafiou o forasteiro ao jogo final: tudo ou nada.
Todo o dinheiro contra o que lhe restava: o Cassino. E lá se foram.
O desafiante pegava três cartas, devolvia seis, buscava mais três,
fazia cara de preocupado; jogava até com o ombro… E o “Doutor
Grund”, agora, estava tranquilo. Fazia a sua performance. Sabia que
sabia!
18. Quando percebeu que
o desafiante jogaria as cartas para dizer Katchanga, adiantou-se e,
abrindo largo sorriso, conclamou: Katchanga… e foi puxar o
dinheiro. O desafiante fez cara de “pena”, jogando a cabeça de
um lado para outro e, com os lábios semi-cerrados, deixou escapar
várias onomatopeias (tsk, tsk, tsk)… Atirou as cartas na mesa e
disse: Katchanga Real!
19. Moral da estória:
a dogmática jurídica sabe tudo, tem – sempre – todas as saídas,
mas sempre sobra algo!!! Os sentidos não cabem na regra. A lei não
está no direito, e vice-versa. Não há isomorfia. Há sempre um
não-dito, que pode ser tirado da “manga do colete interpretativo”.
Esse é o papel da interpretação. Para o “bem” e para o “mal”…!
20. Mas, atenção: a
estória era para mostrar o paradoxo que representa esse fenômeno “a
dogmática jurídica”, com seu “pretenso sistema fechado” e os
modos de derrotá-la. Ou não. Dizia-se (eu repetia muito isso pelo
Brasil afora): você tem que saber jogar a Katchanga… (Real!).
Portanto, não basta pensar que aprendeu jogar a Katchanga. O jogo é
mais complexo (como veremos, os alunos e os neocríticos jurisnautas
que “readaptaram” a estorinha não se deram conta de que a
própria Katchanga Real representa um problema).
21. Nessa época, nem
de longe poderíamos imaginar o “estado de natureza hermenêutico”
provocado pelas teorias voluntaristas (mormente as
pan-principialistas que se multiplicaram Brasil afora). Nem de longe
poderíamos imaginar essa onda “solipsista” que se espraiou
pós-Constituição de 1988, principalmente nos últimos 10-12 anos.
Sendo mais específico: em um Estado dito Democrático de Direito, a
tarefa interpretativa (applicatio) da magistratura é argumentar
dentro dos parâmetros dos mundos constitucionalmente possíveis. Em
parte, lutava-se nas brechas da institucionalidade, para encontrar
vaguezas e ambiguidades, como analíticos que éramos. Mesmo após o
advento da Constituição, levamos alguns anos para compreender o
novo paradigma e a própria autonomia que o direito adquirira. A
“função” da Katchanga se alterara… E muito. Por exemplo, a
crítica ao positivismo se alterou profundamente; passamos a nos
preocupar com o discricionarismo e os ativismos…; no Brasil,
parcela considerável dos juristas ainda não se deu conta disso; dia
destes, em uma banca de mestrado, eu sustentava o cumprimento,
digamos assim, da “letra” do art. 212 do CPP e uma importante
professora me criticou, dizendo: “você está sendo positivista…”
ao exigir o cumprimento da “literalidade”. Na hora, lembrei de
Elias Diaz e sua “legalidade constitucional”… . Depois escrevi
sobre isso, remetendo os leitores para o texto “Aplicar a Letra da
Lei é Atitude Positivista?”, com ênfase na interrogação….
Esse texto está na Revista Novos Estudos Jurídicos, da Univali,
disponível on line.
22. Mas, continuo.
Mesmo depois da Constituição, usei a metáfora várias vezes, já
dando a ela uma “roupagem mais hermenêutica”. Na verdade, sempre
a relatei para evidenciar o papel criativo da hermenêutica. Queria
mostrar que o texto jurídico não é plenipotenciário. Lá adiante,
na fusão de horizontes, levando em conta a Wirkungsgeschichtliches
Bewußtsein, há um algo que se manifesta. Como falei antes, há
sempre um não dito, que deve ser descoberto (desde a primeira edição
do Hermenêutica Juridica e[m] Crise – da década de 90, trabalho
com as três dimensões: Erschossenheit, Entdeckenheit e
Unverborgenheit). Como diz Gadamer, ser que pode ser compreendido é
linguagem. A linguagem não abarca tudo. Sempre sobra “um real”
ainda não dito. Eis aí a questão do des-velamento
(Unverborgenheit).
23. Assim, em um
primeiro momento a Katchanga Real era, efetivamente, o salto para
além do exegetismo. Em um segundo momento, a Katchanga poderia ser
um perigoso elemento de, sob pretexto de superar o exegetismo,
transformar-se em um álibi para poder “dizer qualquer coisa sobre
qualquer coisa”… Algo que o voluntarismo interpretativo de terrae
brasilis fez e faz. Basta ver a pan-principiologia (expressão que
cunhei e que está presente em vários textos meus e especialmente em
Verdade e Consenso). Afinal, se princípios são normas – e deve
haver já mais de 2.000 dissertações e teses que dizem isso –,
qual é a normatividade de “princípios” (sic) como o da
confiança do juiz da causa, da verdade real, da instrumentalidade,
da cooperação processual, etc?
24. Percebe-se, assim,
o modo como a estória contada por Warat se encaixa perfeitamente ao
modo como (ainda) opera a dogmática jurídica, que sobrevive a
partir do sentido comum teórico dos juristas (que ele também
caricaturava como o “monastério dos sábios”). Talvez a
dogmática tenha até se aprimorado (tenho referido, de uns oito anos
para cá, que a dogmática jurídica passou por uma “adaptação
darwiniana”, porque até mesmo os juristas mais “tradicionais”
“descobriram” que as palavras da lei são vagas e ambíguas,
coisa que denunciávamos desde o início dos anos 80, quando nem se
falava ainda em Constituição; junto a isso houve a descoberta da
“era dos princípios”; divirto-me quando um conhecido jurista
diz: “hoje há dois tipos de juízes: o boca da lei e o dos
princípios; o juiz boca da lei está morto; hoje vive o juiz dos
princípios…! Pois é: quando denunciávamos, a partir das teorias
analíticas, que as palavras da lei eram vagas, ambíguas, etc.
éramos duramente criticados…; éramos perigosos…!.
25. Registre-se, por
relevante, que autores contemporâneos a Warat, como é o caso de
Tércio Sampaio Ferraz Jr., oferecem uma excelente descrição para a
dogmática jurídica que possui essas mesmas características.
Tércio, já há mais de trinta anos, em específico, retrata a
dogmática como técnica, dominação e decisão que se desenvolve a
partir da confluência de três fatores históricos específicos: o
método dos glosadores/comentadores do século XII e seguintes; a
concepção sistemática que emerge das correntes do jusnaturalismo
racionalista; e as construções teóricas do século XIX, mais
especificamente a discussão em torno da polêmica “jurisprudência
dos conceitos vs. jurisprudência dos interesses”. Tércio aponta
para o fato de que todo saber dogmático que se constitui no direito
tem como pólo unificador a necessidade da decisão.
26. Em termos mais
simples: o que diferencia o nosso direito de outros direitos
existentes em outras culturas e outros tempos históricos é,
exatamente, a impossibilidade de “decisões salomônicas”, como
bem lembra João Maurício Adeodato. O non liquet impõe à dogmática
uma espécie de tarefa: os problemas jurídicos precisam de uma
solução decisional. Essa é a questão. A “Katchanga”, no
fundo, representa esse fator de decisão que, como desmascarava
Warat, não pode ser encontrada a partir de uma análise pedestre dos
textos que compõem os códigos e a legislação de uma maneira
geral. Há uma plêiade de fatores a influenciar a decisão que ficam
de fora dessas analises estritas do fenômeno jurídico e do modo de
se retratar, tradicionalmente, o papel da dogmática jurídica.
27. Por certo que,
atualmente, nossa tarefa, enquanto viventes de uma democracia
constitucional, é criar as condições para a extirpação de
qualquer tipo de decisionismo. E a Katchanga Real, pós-exegética,
corre o risco – efetivo – de ser decisionista, discricionária,
solipsista, arbitrária… Exatamente por isso é que já não a uso
de há muito, em face desse “alto fator de risco deciso-solipsista
que parcela da doutrina assumiu, recepcionando, equivocadamente, a
Wertungsjurisprudenz (jurisprudência dos valores), a Teoria da
Argumentação Jurídica, que se transformou na “pedra filosofal da
interpretação” (d´onde a disseminação descriteriosa da
ponderação de valores) e um certo realismo jurídico, problemática
que explico em trinta páginas na Introdução da 4ª. Edição do
Verdade e Consenso, para onde me permito remeter o leitor. Por isso,
minha cruzada, de há muito, está assentada na necessidade de se
criar anteparos à atividade decisória, num contexto democrático de
legitimação (é a Teoria da Decisão que proponho). Uma
justificação que, com Dworkin, podemos dizer que deve ser a que
melhor retrata o direito da comunidade política como um todo. O meu
Verdade e Consenso trata disso amiúde.
28. Percebo, pelos
papers de alguns alunos e por alguns sítios (sites e blogs) da
Internet, que há uma utilização equivocada (e simplória) da
metáfora da Katchanga. Explico: os “neocríticos” que se
apropriaram da estória da Katchanga – sem qualquer preocupação
com o revolvimento do chão lingüístico que sustenta a tradição –
apresentam-na em uma espécie de “ponto cego”, que corre o risco
de vitimar sua construção. Os utentes – e outro dia tomei
conhecimento que um importante professor de um Curso de alcance
nacional recomendou vivamente a leitura da estorinha – pretendem
deduzir os efeitos da “Katchanga” à circunstância da
“ponderação à brasileira”. Realizam, assim, os próprios
utentes uma espécie de subsunção… da própria estorinha. E, como
toda subsunção, ela oferece apenas um recorte daquilo que é
possível iluminar a partir da estória contada por Warat e por mim
adaptada à saciedade. “Batem” contra o ôntico, esquecendo-se da
transcendência… (lembro, aqui, do exemplo do fuzil, de Heidegger,
e do exame oral da Universidade, que utilizo no Verdade e Consenso
para explicar a diferença – ontológica – entre regra e
princípio).
29. Veja-se. E vou mais
direto ao ponto. A estória da Katchanga não pode ser utilizada
superficialmente. O texto que trata da “Katchanga” (da Internet),
que até teve algum trânsito na Internet, pretendeu fazer uma
crítica à utilização, por assim dizer, ligeira da teoria dos
princípios de Robert Alexy no Brasil… O problema consistiria em
que a técnica da ponderação de princípios não estaria sendo
empregada de forma rigorosa pelos julgadores brasileiros. Assim,
decisões que arbitram o conflito entre princípios, e que assim
relativizam direitos fundamentais, não estariam geradas por
argumentos consistentes. A decisão judicial consistiria numa mera
escolha – por definição, arbitrária. Vigoraria, pois, uma teoria
da katchanga na mentalidade forense, já que ninguém saberia bem
quais seriam as regras do jogo e nem, portanto, quais as razões que
levariam alguém a vencê-lo. E a invocação do princípio da
proporcionalidade – que, ao invés de aumentar a carga
argumentativa da decisão, serviria para legitimar qualquer solução
– seria a katchanga real. De acordo! O problema é que, por ele,
passa-se a pensar que, se a ponderação for (ou fosse) utilizada
corretamente, o katchangamento desapareceria… Salva-se a teoria,
jogando-se fora a “parte brasileira”… Fácil, pois.
30. Ora, na verdade, o
que deve ser dito é que a ponderação à brasileira não é uma
representação de uma “teoria da Katchanga” (sic), mas, sim, ela
própria é a Katchanga no modo como a joga a dogmática jurídica.
Ela representa uma forma de decidir, e afirmar, assim, o non liquet.
Isso os utentes da Internet que se utilizam da “brincadeira da
Katchanga” não entenderam. Em outras palavras: a dogmática
jurídica, por sua adaptação darwiniana, é muito mais “esperta”
do que se pensa…
31. A versão da
Katchanga que circula por aí é impertinente (no sentido de que não
pertine), porque isso não é uma peculiaridade da “ponderação à
brasileira”. Longe disso. O “mito Katchangal” está presente na
própria teoria de Alexy e no elemento decisionista inerente ao seu
procedimento ou fórmula da ponderação. Por que poupar a tese de
Alexy? Se é verdade que criamos uma “ponderação à brasileira”
– e concordo com alguns júris-nautas nesse ponto –, também é
verdade que há fortes traços discricionários e voluntaristas na
Abwägung original (que, aliás, constou inicialmente na
Interessenjurisprudenz, de Philip Heck, setenta anos antes de Alexy
ter escrito a sua TAJ). Repito: se queremos criticar a ponderação,
critiquemos também o original, mormente aquele “mantra” que
atravessou o oceano, tão seguido e repetido no Brasil: a
distinção/cisão estrutural entre regras e princípios…! Essa
distinção estrutural (que é semântico-estrutural) é abraçada
por um conjunto enorme de juristas de terrae brasilis.
32. Alguns textos
“internáuticos” que querem utilizar a Katchanga para criticar o
uso da ponderação até fazem algum sentido, reconheço. O problema,
entretanto, reside no modo como alguns constroem o argumento. Em um
discurso, sempre fica algo “de fora”. Na hermenêutica filosófica
trabalhamos bem isso. Mas, no caso da estorinha contada na Internet e
que, de certo modo, “fez fama”, ficou muita coisa fora, o que
prejudica sobremaneira seu empreendimento interpretativo.
Parafraseando Dworkin, em seu Justice for Hedgehogs, é possível
dizer que não passa de um acidente o fato de alguns utentes terem se
aproximado da verdade…
33. Ainda, numa
palavra: a “piada” da “Katchanga” pode ser utilizada para
“destruir” a ponderação… Sim! Sem dúvida. Mas não apenas a
ponderação à brasileira. E, fundamentalmente, há que ter
coerência nos argumentos.
34. Com efeito, isto
quer dizer que, para ser coerente, quem utilizar a “Katchanga Real”
tem de, necessariamente, criticar a discricionariedade judicial…,
sob pena de também Katchangar. Ou alguém tem dúvida de que a
ponderação e a discricionariedade são irmãs siamesas? (lembro,
aqui, das agudas e azedas críticas que Müller e Habermas fazem à
ponderação…; nem preciso me referir a outras). E, como demonstro
em Verdade e Consenso, Alexy “não abre mão da
discricionariedade”. Ele é explícito nisso. Do mesmo modo, quem
utilizar a metáfora da Katchanga (pretendendo ser crítico, é
claro) não pode continuar defendendo a distinção
semântico-estrutural entre regras e princípios. Ah, não dá para
compatibilizar isso. Aqui, ainda um registro: há vários juristas
que, a partir da Teoria da Argumentação Jurídica, criaram, para
além da ponderação de princípios, a ponderação de regras… Os
resultados todos conhecemos.
35. Igualmente quem se
utiliza da Katchanga Real não pode ser a favor do livre
convencimento do juiz. De jeito nenhum! Já no processo civil, quem
se utiliza da crítica do “efeito Katchanga real”, deve se postar
contra o instrumentalismo. Na mesma linha, quem se utiliza da
“metáfora Katchangal”, no processo penal, deve ser absolutamente
contra qualquer forma de inquisitivismo. São os, digamos assim,
alguns dos “custos hermenêuticos” que se paga… A menos que se
use a estorinha apenas para fazer rir… E, se sabe, ela produz boas
gargalhadas, porque as pessoas não esperam aquele final apoteótico
da adjetivação “Real”.
36. Em síntese,
Katchanga (Real) é uma estorinha aberta. E paradoxal. Tem
componentes críticos. Mas, lamentavelmente, pode conter fortes
tintas do sujeito cognoscente (do esquema S-O)… E pode ter fortes
indícios de “predação do objeto” (homenageio, aqui, meu mestre
Ernildo Stein). A “Katchanga (Real)” e a crítica podem ser
“amigos”. Mas podem também ser inimigos. Antitéticos. Depende
como se a lê a estória… e como se a conta. Ninguém é dono de
estórias ou histórias. Elas podem ser utilizadas à vontade. Apenas
faço esse registro, de quem viveu aqueles tempos, quando a crítica
brasileira engatinhava!
37. As estórias têm
origens. Não há grau zero. Como diz Gadamer, não há a primeira
palavra. E, fundamentalmente, as estórias possuem sentidos.
Parafraseando uma máxima hermenêutica (no conto está o contador
ou, como diria Heidegger, o mensageiro já vem com a mensagem), na
estória da Katchanga Real, pode estar o Katchangador (ou
catchangueiro). Ou não! Saludos.
Escrito na Dacha de São
José do Herval, bem nos altos da Serra gaúcha, enquanto esperávamos
uma galinha caipira assada, sob os auspícios da Chef Rosane, tomando
um chimarrão com meu Amigo Sérgio Cadermatori – fazendo
recordações da belle epoque da crítica do direito, em que
diariamente privávamos da companhia de Professores como Luis Alberto
Warat e líamos Hart, Castoriadis, Veron, Ross, atirados ao sol da
Ilha do Desterro.