segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A ESTÓRIA DA “KATCHANGA REAL” – RECOLOCANDO AS COISAS NO LUGAR OU DE COMO SE PODE “KATCHANGAR” SEM SE DAR CONTA DE QUE SE ESTÁ “KATCHANGANDO” – UMA HOMENAGEM A LUIS ALBERTO WARAT.

A ESTÓRIA DA “KATCHANGA REAL” – RECOLOCANDO AS COISAS NO LUGAR OU DE COMO SE PODE “KATCHANGAR” SEM SE DAR CONTA DE QUE SE ESTÁ “KATCHANGANDO” – UMA HOMENAGEM A LUIS ALBERTO WARAT.

Lênio Streck
http://www.leniostreck.com.br/site/2012/02/10/a-estoria-da-katchanga-real-por-lenio-streck/

1. Pedi um trabalho sobre princípios e regras para os meus alunos. Alguns dos papers vieram com uma estorinha que servia para criticar a ponderação e uso dos princípios. A estória que apresentaram era a Katchanga (Real), que, segundo eles, circulava na Internet como. Dias depois, na Conferência Nacional da OAB, em Curitiba, 2011, depois de minha palestra, um grupo de estudantes e advogados indagou-me sobre a tal da história da “katchanga”.
2. Alguns, mais velhos, já tinham ouvido eu contar essa estorinha há muitos anos atrás. Pois, como poderemos perceber, mais recentemente a estória da Katchanga ganhou “novos foros”, longe daquilo que significava originalmente. Com “C” ou com “K”, os alunos que usaram a estória tinham a convicção de que, ao se convocarem a estorinha, estavam sendo altamente críticos…
3. Pois bem. Vou fazer, aqui, uma espécie de “interpretação autêntica”, para brincar um pouco com essa palavra. Digo “autêntica” porque faço parte da história institucional do aparecimento da estória da Catchanga (ou Katchanga) em terrae brasilis, há muitos e muitos anos. Pode-se dizer que alguns dos que hoje invocam a metáfora, em sites ou blogs, ainda não haviam nascido quando a estória começou a ser usada na teoria do direito.
4. Então… A estória da Katchanga vem de Florianóplis, Universidade Federal e alrededores. Quem a construiu foi o saudoso Luis Alberto Warat. Ele a chamava de “O Jogo da Katchanga…”. Observe-se: Warat falava mal o português; ele pronunciava Katchanga, com “t”. Como esclarecerei mais adiante, a estória vem dos “escravos de Jó”, que jogavam “cachangá”…
5. Discuti em aula e na minha casa – Warat era frequentador diário, junto com Leonel Severo Rocha e Sérgio Cademartori (entre outros) – a tal estorinha, que virou metáfora. É da década de 80. E, depois, nos anos 90, contei isso em dezenas de conferências.
6. Warat contou a estória para metaforizar (e criticar acidamente) a dogmática jurídica. De certo modo, uma estorinha similar corre no Rio Grande do Sul, envolvendo um jogo de cartas do velho Assis Brasil, figura política importante nos pagos gaúchos. A Katchanga “Real” dele era denominada “Farroupilha”. Ele, porque detinha o poder, não perdia nunca: quando o jogo não tinha saída para ele, ele atirava as cartas na mesa e gritava: “Farroupilha” (lembremos, aqui, prontamente – e isso é extremamente relevante para a compreensão do sentido da metáfora – da decisionista Wille zur Macht de Nietzsche, que pode ser vista no Oitavo Capítulo da Teoria Pura do Poder de Kelsen, quando ali ele diz que “a interpretação é um ato de vontade”; não esqueçamos que Kelsen faz a distinção entre a interpretação como ato de conhecimento e ato de vontade – este último é o ato feito pelos juízes; eis o ovo da serpente do voluntarismo). Observemos como essas coisas têm uma relação.
7. Mas Warat, que, repito, nunca falou português direito (eu passei do espanhol para o português os rascunhos do livro Ciência Jurídica e Seus Dois Maridos e tantos outros alunos faziam essas tarefas cotidianamente enquanto seus orientandos), contava a estória a partir dos Escravos de Jó, que jogavam Cachangá… (desnecessário lembrar, aqui, a cantiga dos Escravos de Jó… – sim, Jó tinha escravos, embora alguns religiosos digam que não, ao “tucanearem” a palavra “escravos” por “servos”; mas, em Jó 1:3, lê-se: possuía sete mil ovelhas (…) e uma grande quantidade de escravos…; de todo modo – e aqui faço uma broma – isso não tem nenhuma importância para o que quero discutir!).
8. Warat inventou a Katchanga Real, adaptando-a, ao que nos contou, de um amigo argentino (em face da pronúncia, “Cachanga” – que já perdera o caráter de oxítona – chegou a ser confundida com “chancha” – “porca real”), para fazer uma crítica à dogmática jurídica. Falo em Warat e lembro, desde logo, o “monastério dos sábios”, o “manifesto do surrealismo jurídico” e “por quien cantan las sirenas” (saudades do gringo; ele chegava lá em casa e perguntava: hay pan? Logo, pegava um pedaço, ligava o fogão a gás e “assava” el pan…; escrevia sempre; em qualquer “papelito”; por quien cantan las sirenas era um amontoado de “hojas” de papel de cadernos, carteiras de cigarro e até de pão – escritas a mão em castellano e/ou portunhol!)
9. Afinal, dizia Warat, “a dogmática jurídica é um jogo de cartas marcadas”. E quando alguém consegue entender “as regras”, ela mesma, a própria dogmática, tem sempre um modo de superar os paradoxos e decidir a “coisa” ao seu modo… Ela, por si, é decisionista, no sentido da “vontade do poder” (Wille zur Macht). D´onde a Katchanga Real e o velho Farroupilha são absolutamente similares. Já no imaginário social isso exsurge claramente. Observe-se: a estória que Warat e nós desenvolvemos e adaptamos para o direito, naqueles dias, tem exatamente relação com uma coisa básica: Cachangá (da cantiga) não é jogo! E, se for, não tem regras! Eis o segredo metafórico. Lembro, nesse sentido, as palavras do professor Cláudio Moreno: “Se esse jogo existisse, seria quase impossível explicar como ele passou despercebido por todos os antropólogos e etnólogos que estudam nossas tradições populares.”. E Artur Louback Lopes complementa: “O que pode ter ocorrido é uma espécie de ‘telefone sem fio’: se originalmente o verso fosse ‘juntavam caxangá’ ao invés de ‘jogavam’, poderíamos pensar em escravos pegando siris em vez de em um jogo…”. Mais: se nos fixarmos na Cantiga famosa, além do jogo não ter sentido, também o restante é, por assim dizer, absolutamente discricionário, como “guerreiros com guerreiros fazem zig…”. Metáforas, metonímias, “telefone sem fio”, etc, assim vamos construindo as “coisas” do sentido e o “sentido das coisas”…!
10. Assim, a “Katchanga real” é um estória que transformamos em metáfora, com o objetivo de explicar o papel poderoso (e perigoso) da interpretação do direito e dos princípios. Lembro a todos: Warat era um analítico da cepa; nunca foi adepto do realismo jurídico. Isso ele sempre deixou bem claro.
11. Mas, vamos a estória: existia um Cassino que aceitava todos os tipos de jogos. Havia uma placa na porta: aqui se jogam todos os jogos! Isto é, não havia nada que ficasse de fora do “sistema de jogo” do Cassino. Tratava-se de um Cassino non liquet (na verdade, vedação de non liquet). Um Cassino que era um sistema aberto e fechado ao mesmo tempo (prato cheio não só para hermeneutas, como também para sistêmicos, como Leonel Severo Rocha, com o qual tantas vezes discutimos isso – ele, Warat, Sérgio e eu). Poderíamos chamar esse “sistema do cassino” de uma espécie de “Cassino Fundamental” (um Grundcassino?)…! De uma forma mais sofisticada, pressupõe-se que “todos os jogos sejam jogados”, ou algo nessa linha. As derivações são múltiplas, pois.
12. Pois bem. Chegou um forasteiro e desafiou o croupier do cassino, propondo-lhe o jogo da Katchanga. Como o croupier não poderia ignorar esse tipo de jogo – porque, afinal, ali se jogavam todos os jogos (lembremos do non liquet) –, aceitou, ciente de que “o jogo se joga jogando”, portanto, não há lacunas no “sistema jogo”.
13. Veja-se que o dono do Cassino, também desempenhando as funções de croupier, sequer sabia que Katchanga se jogava com cartas… Por isso, desafiou o desafiante a iniciar o jogo, fazendo com que este tirasse do bolso um baralho. Mais: o desafiado também não sabia com quantas cartas se jogava a Katchanga… Por isso, novamente instou o desafiante a começar o jogo.
14. O desafiante, então, distribuiu dez cartas para cada um e começou “comprando” duas cartas. O desafiado, com isso, já aprendera duas regras: 1) Katchanga se joga com cartas; 2) é possível iniciar “comprando” duas cartas. Na sequência, o desafiante pegou cinco cartas, devolveu três; o desafiado (croupier) fez o mesmo. Eram as regras seguintes.
15. Mas o “Grundcassinero” (chamemos ele assim) não entendia o que fazer na sequência. O que fazer com as cartas? Eis que, de repente, o desafiante colocou suas cartas na mesma, dizendo “Katchanga”… e, ato contínuo, puxou o dinheiro, limpando a mesa. O “Grund…”, vendo as cartas, “captou” que havia uma sequência de três cartas e as demais estavam desconexas. Logo, achou que ali estava uma nova regra.
16. Dobraram a aposta e… e tudo de novo. Quando o “Grund…” conseguiu fazer uma sequência igual a que dera a vitória ao desafiante na jogada primeira, nem deu tempo para mais nada, porque o desafiante atirou as cartas na mesa, dizendo “Katchanga”… Tinha, desta vez, duas sequências…! Dobraram novamente a aposta e tudo se repetiu, com pequenas variações na “formação” do carteado. O “doutor Grund…” já havia perdido quase todo o dinheiro, quando se deu conta do óbvio: a regra do jogo estava no enunciado “ganha quem disser Katchanga primeiro”.
17. Pronto. O “doutor” “Grund…” desafiou o forasteiro ao jogo final: tudo ou nada. Todo o dinheiro contra o que lhe restava: o Cassino. E lá se foram. O desafiante pegava três cartas, devolvia seis, buscava mais três, fazia cara de preocupado; jogava até com o ombro… E o “Doutor Grund”, agora, estava tranquilo. Fazia a sua performance. Sabia que sabia!
18. Quando percebeu que o desafiante jogaria as cartas para dizer Katchanga, adiantou-se e, abrindo largo sorriso, conclamou: Katchanga… e foi puxar o dinheiro. O desafiante fez cara de “pena”, jogando a cabeça de um lado para outro e, com os lábios semi-cerrados, deixou escapar várias onomatopeias (tsk, tsk, tsk)… Atirou as cartas na mesa e disse: Katchanga Real!
19. Moral da estória: a dogmática jurídica sabe tudo, tem – sempre – todas as saídas, mas sempre sobra algo!!! Os sentidos não cabem na regra. A lei não está no direito, e vice-versa. Não há isomorfia. Há sempre um não-dito, que pode ser tirado da “manga do colete interpretativo”. Esse é o papel da interpretação. Para o “bem” e para o “mal”…!
20. Mas, atenção: a estória era para mostrar o paradoxo que representa esse fenômeno “a dogmática jurídica”, com seu “pretenso sistema fechado” e os modos de derrotá-la. Ou não. Dizia-se (eu repetia muito isso pelo Brasil afora): você tem que saber jogar a Katchanga… (Real!). Portanto, não basta pensar que aprendeu jogar a Katchanga. O jogo é mais complexo (como veremos, os alunos e os neocríticos jurisnautas que “readaptaram” a estorinha não se deram conta de que a própria Katchanga Real representa um problema).
21. Nessa época, nem de longe poderíamos imaginar o “estado de natureza hermenêutico” provocado pelas teorias voluntaristas (mormente as pan-principialistas que se multiplicaram Brasil afora). Nem de longe poderíamos imaginar essa onda “solipsista” que se espraiou pós-Constituição de 1988, principalmente nos últimos 10-12 anos. Sendo mais específico: em um Estado dito Democrático de Direito, a tarefa interpretativa (applicatio) da magistratura é argumentar dentro dos parâmetros dos mundos constitucionalmente possíveis. Em parte, lutava-se nas brechas da institucionalidade, para encontrar vaguezas e ambiguidades, como analíticos que éramos. Mesmo após o advento da Constituição, levamos alguns anos para compreender o novo paradigma e a própria autonomia que o direito adquirira. A “função” da Katchanga se alterara… E muito. Por exemplo, a crítica ao positivismo se alterou profundamente; passamos a nos preocupar com o discricionarismo e os ativismos…; no Brasil, parcela considerável dos juristas ainda não se deu conta disso; dia destes, em uma banca de mestrado, eu sustentava o cumprimento, digamos assim, da “letra” do art. 212 do CPP e uma importante professora me criticou, dizendo: “você está sendo positivista…” ao exigir o cumprimento da “literalidade”. Na hora, lembrei de Elias Diaz e sua “legalidade constitucional”… . Depois escrevi sobre isso, remetendo os leitores para o texto “Aplicar a Letra da Lei é Atitude Positivista?”, com ênfase na interrogação…. Esse texto está na Revista Novos Estudos Jurídicos, da Univali, disponível on line.
22. Mas, continuo. Mesmo depois da Constituição, usei a metáfora várias vezes, já dando a ela uma “roupagem mais hermenêutica”. Na verdade, sempre a relatei para evidenciar o papel criativo da hermenêutica. Queria mostrar que o texto jurídico não é plenipotenciário. Lá adiante, na fusão de horizontes, levando em conta a Wirkungsgeschichtliches Bewußtsein, há um algo que se manifesta. Como falei antes, há sempre um não dito, que deve ser descoberto (desde a primeira edição do Hermenêutica Juridica e[m] Crise – da década de 90, trabalho com as três dimensões: Erschossenheit, Entdeckenheit e Unverborgenheit). Como diz Gadamer, ser que pode ser compreendido é linguagem. A linguagem não abarca tudo. Sempre sobra “um real” ainda não dito. Eis aí a questão do des-velamento (Unverborgenheit).
23. Assim, em um primeiro momento a Katchanga Real era, efetivamente, o salto para além do exegetismo. Em um segundo momento, a Katchanga poderia ser um perigoso elemento de, sob pretexto de superar o exegetismo, transformar-se em um álibi para poder “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”… Algo que o voluntarismo interpretativo de terrae brasilis fez e faz. Basta ver a pan-principiologia (expressão que cunhei e que está presente em vários textos meus e especialmente em Verdade e Consenso). Afinal, se princípios são normas – e deve haver já mais de 2.000 dissertações e teses que dizem isso –, qual é a normatividade de “princípios” (sic) como o da confiança do juiz da causa, da verdade real, da instrumentalidade, da cooperação processual, etc?
24. Percebe-se, assim, o modo como a estória contada por Warat se encaixa perfeitamente ao modo como (ainda) opera a dogmática jurídica, que sobrevive a partir do sentido comum teórico dos juristas (que ele também caricaturava como o “monastério dos sábios”). Talvez a dogmática tenha até se aprimorado (tenho referido, de uns oito anos para cá, que a dogmática jurídica passou por uma “adaptação darwiniana”, porque até mesmo os juristas mais “tradicionais” “descobriram” que as palavras da lei são vagas e ambíguas, coisa que denunciávamos desde o início dos anos 80, quando nem se falava ainda em Constituição; junto a isso houve a descoberta da “era dos princípios”; divirto-me quando um conhecido jurista diz: “hoje há dois tipos de juízes: o boca da lei e o dos princípios; o juiz boca da lei está morto; hoje vive o juiz dos princípios…! Pois é: quando denunciávamos, a partir das teorias analíticas, que as palavras da lei eram vagas, ambíguas, etc. éramos duramente criticados…; éramos perigosos…!.
25. Registre-se, por relevante, que autores contemporâneos a Warat, como é o caso de Tércio Sampaio Ferraz Jr., oferecem uma excelente descrição para a dogmática jurídica que possui essas mesmas características. Tércio, já há mais de trinta anos, em específico, retrata a dogmática como técnica, dominação e decisão que se desenvolve a partir da confluência de três fatores históricos específicos: o método dos glosadores/comentadores do século XII e seguintes; a concepção sistemática que emerge das correntes do jusnaturalismo racionalista; e as construções teóricas do século XIX, mais especificamente a discussão em torno da polêmica “jurisprudência dos conceitos vs. jurisprudência dos interesses”. Tércio aponta para o fato de que todo saber dogmático que se constitui no direito tem como pólo unificador a necessidade da decisão.
26. Em termos mais simples: o que diferencia o nosso direito de outros direitos existentes em outras culturas e outros tempos históricos é, exatamente, a impossibilidade de “decisões salomônicas”, como bem lembra João Maurício Adeodato. O non liquet impõe à dogmática uma espécie de tarefa: os problemas jurídicos precisam de uma solução decisional. Essa é a questão. A “Katchanga”, no fundo, representa esse fator de decisão que, como desmascarava Warat, não pode ser encontrada a partir de uma análise pedestre dos textos que compõem os códigos e a legislação de uma maneira geral. Há uma plêiade de fatores a influenciar a decisão que ficam de fora dessas analises estritas do fenômeno jurídico e do modo de se retratar, tradicionalmente, o papel da dogmática jurídica.
27. Por certo que, atualmente, nossa tarefa, enquanto viventes de uma democracia constitucional, é criar as condições para a extirpação de qualquer tipo de decisionismo. E a Katchanga Real, pós-exegética, corre o risco – efetivo – de ser decisionista, discricionária, solipsista, arbitrária… Exatamente por isso é que já não a uso de há muito, em face desse “alto fator de risco deciso-solipsista que parcela da doutrina assumiu, recepcionando, equivocadamente, a Wertungsjurisprudenz (jurisprudência dos valores), a Teoria da Argumentação Jurídica, que se transformou na “pedra filosofal da interpretação” (d´onde a disseminação descriteriosa da ponderação de valores) e um certo realismo jurídico, problemática que explico em trinta páginas na Introdução da 4ª. Edição do Verdade e Consenso, para onde me permito remeter o leitor. Por isso, minha cruzada, de há muito, está assentada na necessidade de se criar anteparos à atividade decisória, num contexto democrático de legitimação (é a Teoria da Decisão que proponho). Uma justificação que, com Dworkin, podemos dizer que deve ser a que melhor retrata o direito da comunidade política como um todo. O meu Verdade e Consenso trata disso amiúde.
28. Percebo, pelos papers de alguns alunos e por alguns sítios (sites e blogs) da Internet, que há uma utilização equivocada (e simplória) da metáfora da Katchanga. Explico: os “neocríticos” que se apropriaram da estória da Katchanga – sem qualquer preocupação com o revolvimento do chão lingüístico que sustenta a tradição – apresentam-na em uma espécie de “ponto cego”, que corre o risco de vitimar sua construção. Os utentes – e outro dia tomei conhecimento que um importante professor de um Curso de alcance nacional recomendou vivamente a leitura da estorinha – pretendem deduzir os efeitos da “Katchanga” à circunstância da “ponderação à brasileira”. Realizam, assim, os próprios utentes uma espécie de subsunção… da própria estorinha. E, como toda subsunção, ela oferece apenas um recorte daquilo que é possível iluminar a partir da estória contada por Warat e por mim adaptada à saciedade. “Batem” contra o ôntico, esquecendo-se da transcendência… (lembro, aqui, do exemplo do fuzil, de Heidegger, e do exame oral da Universidade, que utilizo no Verdade e Consenso para explicar a diferença – ontológica – entre regra e princípio).
29. Veja-se. E vou mais direto ao ponto. A estória da Katchanga não pode ser utilizada superficialmente. O texto que trata da “Katchanga” (da Internet), que até teve algum trânsito na Internet, pretendeu fazer uma crítica à utilização, por assim dizer, ligeira da teoria dos princípios de Robert Alexy no Brasil… O problema consistiria em que a técnica da ponderação de princípios não estaria sendo empregada de forma rigorosa pelos julgadores brasileiros. Assim, decisões que arbitram o conflito entre princípios, e que assim relativizam direitos fundamentais, não estariam geradas por argumentos consistentes. A decisão judicial consistiria numa mera escolha – por definição, arbitrária. Vigoraria, pois, uma teoria da katchanga na mentalidade forense, já que ninguém saberia bem quais seriam as regras do jogo e nem, portanto, quais as razões que levariam alguém a vencê-lo. E a invocação do princípio da proporcionalidade – que, ao invés de aumentar a carga argumentativa da decisão, serviria para legitimar qualquer solução – seria a katchanga real. De acordo! O problema é que, por ele, passa-se a pensar que, se a ponderação for (ou fosse) utilizada corretamente, o katchangamento desapareceria… Salva-se a teoria, jogando-se fora a “parte brasileira”… Fácil, pois.
30. Ora, na verdade, o que deve ser dito é que a ponderação à brasileira não é uma representação de uma “teoria da Katchanga” (sic), mas, sim, ela própria é a Katchanga no modo como a joga a dogmática jurídica. Ela representa uma forma de decidir, e afirmar, assim, o non liquet. Isso os utentes da Internet que se utilizam da “brincadeira da Katchanga” não entenderam. Em outras palavras: a dogmática jurídica, por sua adaptação darwiniana, é muito mais “esperta” do que se pensa…
31. A versão da Katchanga que circula por aí é impertinente (no sentido de que não pertine), porque isso não é uma peculiaridade da “ponderação à brasileira”. Longe disso. O “mito Katchangal” está presente na própria teoria de Alexy e no elemento decisionista inerente ao seu procedimento ou fórmula da ponderação. Por que poupar a tese de Alexy? Se é verdade que criamos uma “ponderação à brasileira” – e concordo com alguns júris-nautas nesse ponto –, também é verdade que há fortes traços discricionários e voluntaristas na Abwägung original (que, aliás, constou inicialmente na Interessenjurisprudenz, de Philip Heck, setenta anos antes de Alexy ter escrito a sua TAJ). Repito: se queremos criticar a ponderação, critiquemos também o original, mormente aquele “mantra” que atravessou o oceano, tão seguido e repetido no Brasil: a distinção/cisão estrutural entre regras e princípios…! Essa distinção estrutural (que é semântico-estrutural) é abraçada por um conjunto enorme de juristas de terrae brasilis.
32. Alguns textos “internáuticos” que querem utilizar a Katchanga para criticar o uso da ponderação até fazem algum sentido, reconheço. O problema, entretanto, reside no modo como alguns constroem o argumento. Em um discurso, sempre fica algo “de fora”. Na hermenêutica filosófica trabalhamos bem isso. Mas, no caso da estorinha contada na Internet e que, de certo modo, “fez fama”, ficou muita coisa fora, o que prejudica sobremaneira seu empreendimento interpretativo. Parafraseando Dworkin, em seu Justice for Hedgehogs, é possível dizer que não passa de um acidente o fato de alguns utentes terem se aproximado da verdade…
33. Ainda, numa palavra: a “piada” da “Katchanga” pode ser utilizada para “destruir” a ponderação… Sim! Sem dúvida. Mas não apenas a ponderação à brasileira. E, fundamentalmente, há que ter coerência nos argumentos.
34. Com efeito, isto quer dizer que, para ser coerente, quem utilizar a “Katchanga Real” tem de, necessariamente, criticar a discricionariedade judicial…, sob pena de também Katchangar. Ou alguém tem dúvida de que a ponderação e a discricionariedade são irmãs siamesas? (lembro, aqui, das agudas e azedas críticas que Müller e Habermas fazem à ponderação…; nem preciso me referir a outras). E, como demonstro em Verdade e Consenso, Alexy “não abre mão da discricionariedade”. Ele é explícito nisso. Do mesmo modo, quem utilizar a metáfora da Katchanga (pretendendo ser crítico, é claro) não pode continuar defendendo a distinção semântico-estrutural entre regras e princípios. Ah, não dá para compatibilizar isso. Aqui, ainda um registro: há vários juristas que, a partir da Teoria da Argumentação Jurídica, criaram, para além da ponderação de princípios, a ponderação de regras… Os resultados todos conhecemos.
35. Igualmente quem se utiliza da Katchanga Real não pode ser a favor do livre convencimento do juiz. De jeito nenhum! Já no processo civil, quem se utiliza da crítica do “efeito Katchanga real”, deve se postar contra o instrumentalismo. Na mesma linha, quem se utiliza da “metáfora Katchangal”, no processo penal, deve ser absolutamente contra qualquer forma de inquisitivismo. São os, digamos assim, alguns dos “custos hermenêuticos” que se paga… A menos que se use a estorinha apenas para fazer rir… E, se sabe, ela produz boas gargalhadas, porque as pessoas não esperam aquele final apoteótico da adjetivação “Real”.
36. Em síntese, Katchanga (Real) é uma estorinha aberta. E paradoxal. Tem componentes críticos. Mas, lamentavelmente, pode conter fortes tintas do sujeito cognoscente (do esquema S-O)… E pode ter fortes indícios de “predação do objeto” (homenageio, aqui, meu mestre Ernildo Stein). A “Katchanga (Real)” e a crítica podem ser “amigos”. Mas podem também ser inimigos. Antitéticos. Depende como se a lê a estória… e como se a conta. Ninguém é dono de estórias ou histórias. Elas podem ser utilizadas à vontade. Apenas faço esse registro, de quem viveu aqueles tempos, quando a crítica brasileira engatinhava!
37. As estórias têm origens. Não há grau zero. Como diz Gadamer, não há a primeira palavra. E, fundamentalmente, as estórias possuem sentidos. Parafraseando uma máxima hermenêutica (no conto está o contador ou, como diria Heidegger, o mensageiro já vem com a mensagem), na estória da Katchanga Real, pode estar o Katchangador (ou catchangueiro). Ou não! Saludos.

Escrito na Dacha de São José do Herval, bem nos altos da Serra gaúcha, enquanto esperávamos uma galinha caipira assada, sob os auspícios da Chef Rosane, tomando um chimarrão com meu Amigo Sérgio Cadermatori – fazendo recordações da belle epoque da crítica do direito, em que diariamente privávamos da companhia de Professores como Luis Alberto Warat e líamos Hart, Castoriadis, Veron, Ross, atirados ao sol da Ilha do Desterro.


Alexy à brasileira ou a Teoria da Katchanga

GEORGE MARMELSTEIN LIMA

Certa semana, viajei para Floripa para ministrar minha aula no módulo de direito constitucional na Emagis. Após as aulas, dei uma volta pela cidade com alguns juízes federais que participaram do curso e, através deles, ouvi a seguinte anedota:
Um rico senhor chega a um cassino e senta-se sozinho em uma mesa no canto do salão principal. O dono do cassino, percebendo que aquela seria uma ótima oportunidade de tirar um pouco do dinheiro do homem rico, perguntou se ele não desejaria jogar.
- Temos roleta, blackjack, texas holden’ e o que mais lhe interessar, disse o dono do Cassino.
- Nada disso me interessa, respondeu o cliente. Só jogo a Katchanga.
O dono do cassino perguntou para todos os crupiês lá presentes se algum deles conhecia a tal da Katchanga. Nada. Ninguém sabia que diabo de jogo era aquele.
Então, o dono do cassino teve uma idéia. Disse para os melhores crupiês jogarem a tal da Katchanga com o cliente mesmo sem conhecer as regras para tentar entender o jogo e assim que eles dominassem as técnicas básicas, tentariam extrair o máximo de dinheiro possível daquele “pote do ouro”.
E assim foi feito.
Na primeira mão, o cliente deu as cartas e, do nada, gritou: “Katchanga!” E levou todo o dinheiro que estava na mesa.
Na segunda mão, a mesma coisa. Katchanga! E novamente o cliente limpou a mesa.
Assim foi durante a noite toda. Sempre o rico senhor dava o seu grito de Katchanga e ficava com o dinheiro dos incrédulos e confusos crupiês.
De repente, um dos crupiês teve uma idéia. Seria mais rápido do que o homem rico. Assim que as cartas foram distribuídas, o crupiê rapidamente gritou com ar de superioridade: “Katchanga!”
Já ia pegar o dinheiro da mesa quando o homem rico, com uma voz mansa mas segura, disse: “Espere aí. Eu tenho uma Katchanga Real!”. E mais uma vez levou todo o dinheiro da mesa…
Ao ouvir essa piada, lembrei imediatamente do oba-oba constitucional que a prática jurídica brasileira adotou a partir das idéias de Alexy.
Como é do costume brasileiro, a teoria dos princípios de Alexy foi, em grande parte, distorcida quando chegou por aqui.
Para compreender o que quero dizer, vou explicar, bem sinteticamente, os pontos principais da teoria de Alexy.
Alexy parte de algumas premissas básicas e necessariamente interligadas:
(a) em primeiro lugar, a idéia de que os direitos fundamentais possuem, em grande medida, a estrutura de princípios, sendo, portanto, mandamentos de otimização que devem ser efetivados ao máximo, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas que surjam concretamente;
(b) em segundo lugar, o reconhecimento de que, em um sistema comprometido com os valores contitucionais, é freqüente a ocorrência de colisões entre os princípios que, invariavelmente, acarretará restrições recíprocas entre essas normas (daí a relativização dos direitos fundamentais);
(c) em terceiro lugar, a conclusão de que, para solucionar o problema das colisões de princípios, a ponderação ou sopesamento (ou ainda proporcionalidade em sentido estrito) é uma técnica indispensável;
(d) por fim, mas não menos importante, que o sopesamento deve ser bem fundamentado, calcado em uma sólida e objetiva argumentação jurídica, para não ser arbitrário e irracional.
Os itens a, b e c já estão bem consolidados na mentalidade forense brasileira. Hoje, já existem diversas decisões do Supremo Tribunal Federal aceitando a tese de relativização dos direitos fundamentais, com base na percepção de que as normas constitucionais costumam limitar-se entre si, já que protegem valores potencialmente colidentes. Do mesmo modo, há menções expressas à técnica da ponderação, demonstrando que as idéias básicas de Alexy já fazem parte do discurso judicial.
O problema todo é que não se costuma enfatizar adequadamente o último item, a saber, a necessidade de argumentar objetivamente e de decidir com transparência. Esse ponto é bastante negligenciado pela prática constitucional brasileira. Costuma-se gastar muita tinta e papel para justificar a existência da colisão de direitos fundamentais e a sua conseqüente relativização, mas, na hora do pega pra capar, esquece-se de fundamentar consistentemente a escolha. Por isso, todas as críticas que geralmente são feitas à técnica da ponderação – por ser irracional, pouco transparente, arbitrária, subjetiva, antidemocrática, imprevisível, insegura e por aí vai – são, em grande medida, procedentes diante da realidade brasileira. Entre nós, vigora a teoria da Katchanga, já que ninguém sabe ao certo quais são as regras do jogo. Quem dá as cartas é quem define quem vai ganhar, sem precisar explicar os motivos.
Virgílio Afonso da Silva conseguiu captar bem esse fenômeno no seu texto “O Proporcional e o Razoável”. Ele apontou diversos casos em que o STF, utilizando do pretexto de que os direitos fundamentais podem ser relativizados com base no princípio da proporcionalidade, simplesmente invalidou o ato normativo questionado sem demonstrar objetivamente porque o ato seria desproporcional.
Para ele, “a invocação da proporcionalidade [na jurisprudência do STF] é, não raramente, um mero recurso a um tópos, com caráter meramente retórico, e não sistemático (…). O raciocínio costuma ser muito simplista e mecânico. Resumidamente: (a) a constituição consagra a regra da proporcionalidade; (b) o ato questionado não respeita essa exigência; (c) o ato questionado é inconstitucional”.
Um exemplo ilustrativo desse fenômeno ocorreu com o Caso da Pesagem dos Botijões de Gás (STF, ADI 855-2/DF).
O Estado do Paraná aprovou uma lei obrigando que os revendedores de gás pesassem os botijões na frente do consumidor antes de vendê-los. A referida norma atende ao princípio da defesa do consumidor, previsto na Constituição. E certamente não deve ter sido fácil aprová-la, em razão do lobby contrário dos revendedores de gás. Mesmo assim, a defesa do consumidor falou mais alto, e a lei foi aprovada pela Assembléia Legislativa, obedecendo formalmente a todas as regras do procedimento legislativo.
A lei, contudo, foi reputada inconstitucional pelo STF por ser “irrazoável e não proporcional”. Que aspectos da proporcionalidade foram violados? Ninguém sabe, pois não há na decisão do STF. Katchanga!
No fundo, a idéia de sopesamento/ balanceamento/ ponderação/ proporcionalidade não está sendo utilizada para reforçar a carga argumentativa da decisão, mas justamente para desobrigar o julgador de fundamentar. É como se a simples invocação do princípio da proporcionalidade fosse suficiente para tomar qualquer decisão que seja. O princípio da proporcionalidade é a katchanga real!
Não pretendo, com as críticas acima, atacar a teoria dos princípios em si, mas sim o uso distorcido que se faz dela aqui no Brasil. Como bem apontou o Daniel Sarmento: “muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandiloqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser” (SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Lúmen Juris, 2006, p. 200).
Sarmento tem razão. Esse oba-oba constitucional existe mesmo. E não é só entre os juízes de primeiro grau, mas em todas as instâncias, inclusive no Supremo Tribunal Federal.
Isso não significa dizer que se deve abrir mão do sopesamento. Aliás, não dá pra abrir mão do sopesamento, já que ele é inevitável quando se está diante de um ordenamento jurídico como o brasileiro que aceita a força normativa dos direitos fundamentais.
O que deve ser feito é tentar melhorar a argumentação jurídica, buscando dar mais racionalidade ao processo de justificação do julgamento, através de uma fundamentação mais consistente, baseada, sobretudo, em dados empíricos e objetivos que reforcem o acerto da decisão tomada.
Abaixo a katchangada!

Por ter um pouco a ver com o post acima, cito a seguinte decisão do STF: HC 94194.
Vou resumir o caso:
Vicente Ares Gonzales é um ex-policial civil acusado de envolvimento com a quadrilha que furtou o Banco Central de Fortaleza. Foi ele quem, supostamente, comandou a extorsão mediante seqüestro que culminou na morte de um dos principais responsáveis pelo crime. Além disso, é réu pronunciado por homicídio pelo juiz da Vara do Júri e Execuções Criminais de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, e responde a processo por porte ilegal de arma e lesão corporal na Vara Criminal e de Execuções da Comarca de Varginha, em Minas Gerais.
Sua prisão preventiva foi decretada pelo juiz de primeiro grau (11a Vara/Ce), e foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 5a Região, que foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, até que… … o STF resolveu soltar o dito cujo.
Em termos polidos, o Min. Celso de Mello disse que o juiz do caso cometeu uma katchangada (confirmada pelo TRF e pelo STJ). Para o ministro, a decisão contestada “apoiou-se em meras suposições destituídas de base empírica idônea, sequer indicando as razões de concreta necessidade que, se presentes, poderiam justificar a constrição do status libertatis (estado de liberdade)”.
Particularmente, gosto dos votos do Min. Celso de Mello. Já o elogiei aqui abertamente no caso da greve dos servidores públicos e do voto sobre os tratados internacionais sobre direitos humanos. Mas tentei encontrar, no julgamento acima, qualquer fundamentação sobre o caso específico que ele estava apreciando e não encontrei. Foi uma decisão genérica para um caso extremamente peculiar. A decisão dele cabe para qualquer outra situação. Uma Katchanga Real.
 
Texto originalmente publicado no blog do autor - http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):

LIMA, George Marmelstein. Alexy à brasileira ou a Teoria da Katchanga. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3222, 27 abr. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21646>. Acesso em: 21 out. 2013.