quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

ARTIGO: ESCRAVIDÃO E BASES DO CÓDIGO CIVIL


A ESCRAVIDÃO NO BRASIL E SUA INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Andressa Solon Borges
Graduada em Letras com habilitação em Língua Francesa e Literaturas (UFRN)
Aluna do Curso de Direito da FARN
Auxiliar Técnica no Juizado Especial Criminal do Distrito Judiciário da Zona Norte de Natal

1 INTRODUÇÃO

Toda e qualquer civilização necessita de um ordenamento de regras para a convivência harmônica entre seus membros. Isso já foi observado até mesmo nas sociedades mais remotas de que se tem conhecimento. Na brasileira não poderia ser diferente, pois os indivíduos naturalmente possuem interesses distintos, que devem ser organizados de forma a evitar o caos e a extinção da sociedade. Eis que surgem as leis com a finalidade precípua de organizar e ordenar seus membros e suas relações.
Há sociedades em que essas leis são acolhidas por seus membros sem necessitar de um documento escrito lhes conferindo validade; já em outras se faz necessário a positivação das normas por assim garantir um maior respaldo de veracidade e legalidade. De acordo com Nélson Godoy Bassil Dower o direito garante a vida em sociedade por seus complexos de princípios e normas.
A Constituição de um País é o documento que serve de base e orientação para a disciplina e criação de outros institutos jurídicos, como o Código Civil, também objeto deste estudo, sendo este classificado como um ramo do direito privado, cujo surgimento deu-se em 1916, dado que o Brasil de 1520 a 1549 era regido por legislações espaças, tais como as cartas de doações, Legislações Eclesiásticas, forais. No que se refere à legislação privada comum, eram aplicadas as chamadas Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que não solucionavam as necessidades da Colônia, embora fossem aplicadas em todo o território nacional, o que originou a promulgação avulsa de leis extravagantes que regulamentavam sobretudo as práticas do comércio.
Embora seja considerada por alguns críticos uma obra notável, que atendia às necessidades sociais da época, é preciso se fazer uma investigação da veracidade dessas afirmações, visto que a sociedade da época não era composta em sua maioria por burgueses, e sim por pobres, mestiços ex escravos, entre outros que não possuíam direitos ou que a lei vigente sequer lhes conferiu qualquer importância ou amparo, dado que começou a ser confeccionado num período em que o sistema escravocrata estava ainda vigente, o olhar da comissão de elaboração do projeto tinha um cunho burguês, ou seja, embora oficialmente não estivesse a sociedade sob o manto da escravidão, ainda se tinha raízes muito fortes sobre esse sistema; ainda se tinha uma concepção muito forte sobre a definição de escravos, logo, eles ainda permaneciam, mesmo com o fim da escravidão, à margem da sociedade.
Sendo assim, é possível se dizer que o Código Civil de 1916 abarcou efetivamente de todas as questões sociais da época? Vislumbrou todos os aspectos vigentes? É possível dizer que somente em 1916 a sociedade necessitou desse instituto legal? É possível dizer que atende aos anseios da sociedade como um todo, dado que a maioria era de negros, sem direitos e sem amparo? Por que se demorou tanto a se elaborar um Código Civil para a época, visto que a Lei utilizada no Brasil antes da primeira constituição elaborada era a Lei 30 de Outubro de 1823, que vigia no país antes da elaboração e confecção das próprias leis do Brasil?

2 DA PROBLEMÁTICA
A discussão desse tema denota a importância de se averiguar a causa do atraso na confecção do Código Civil Brasileiro, bem como se ele refletiu ou reflete a real sociedade e a sua necessidade, visto que as leis são um espelho e um produto dos anseios sociais. É bem verdade que o Direito sempre caminha atrás de tais anseios, porém nesse caso não foi o simples atraso legiferante, causa da vacância legislativa que se viu e se vê hoje no país em relação a alguns institutos (como por exemplo, a lei do direito à greve dos servidores públicos), e sim a difícil tarefa de, no período da confecção do novo Código, enquadrar escravos (seres humanos) como “coisas ou animais”; como deixar de fora pessoas, sem que isso ferisse o próprio conceito de ser humano que se encontra estabelecido no Código Civil? Como aplicá-lo? Como discipliná-lo sem que causasse tormento social e legal? Seria este o ponto de partida do tema acima proposto.
Para se falar sobre o tema proposto, necessário se faz um breve apanhado histórico sobre a questão da escravidão no Brasil, quando começou e até onde perdurou, dado que o país foi um dos últimos a abolir completamente a escravidão do panorama social e político da época. Mesmo assim, após a abolição, ainda perduraram resquícios e suas consequências reverberam até os dias atuais.
Sabe-se que até o final do século XIX ainda ocorriam formações de quilombos e que os negros eram comercializados legalmente, sem qualquer divergência entre aqueles detentores do poder econômico que promoviam a comercialização, diferentemente do que ocorreu com os índios quando os portugueses aqui chegaram, dada a inquietação causada nos colonizadores:
A escravidão dos africanos, já legalizada antes da descoberta do Brasil, foi nele recebida e introduzida como coisa lícita; o comércio dos escravos negros foi natural e suavemente estabelecido para a colônia, e até protegido e promovido pelo governo. (Clarence José de Matos apud Perdigão Malheiros – A escravidão Africana no Brasil).

Nunca se questionou o papel dos escravos na sociedade brasileira, por estar sempre bem definido, ou seja, era uma mercadoria, uma propriedade. Analisando-se um conceito bem elementar vês-se que eram mercadorias, comparados à animais, tinham preço e chegavam, muitas vezes a ser inclusos até em inventários dos senhores de engenho.
Apenas em 1850 foi assinada a Lei Áurea, que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil, mesmo sob o clamor contrário dos latifundiários que se sentiram prejudicados com a perda das suas máquinas de produção. Ainda assim não foi possível dizer que houve contribuição deles para a formação cultural e legal do país. Na visão de Antônio Carlos Wolkmer:
(...) se a contribuição dos indígenas foi relevante para a construção de nossa cultura, o mesmo não se pode dizer quanto à origem do Direito nacional, pois os nativos não conseguiram impor seus mores e suas leis, participando mais na humilde condição de objeto do direito real, ou seja, objetos de proteção jurídica. Igualmente o negro, para aqui trazido na condição de escravo, se sua presença é mais visível e assimilável no contexto cultural brasileiro, a sua própria condição servil e a desintegração cultural a que lhes impelia a imigração forçada a que se viam sujeitos, não lhes permitiu também pudessem competir com o luso na elaboração do Direito Brasileiro.

Houve um momento na história em que o número de negros trazidos da África superou o de brancos existentes no país. Superou até mesmo o número de habitantes locais, chegando à proporção, em meados de 1850, de 3.500.000 negros para 1.500.000 brancos.
Eis que com o fim da escravidão e o início da República, deu-se a necessidade de confecção de leis para garantir proteção às várias classes surgidas no início dessa nova fase. As relações pactuadas entre as pessoas, os comerciantes, a classe trabalhadora assalariada, e os negócios jurídicos firmados necessitavam de proteção jurídica, que até então, não eram garantidas por qualquer meio estatal.
A Lei 3.071 de 01.01.1916, cuja comissão para sua confecção foi criada em 1899 tratou de regulamentar questões relativas à família, propriedade e o contrato. “O Código Civil Brasileiro foi uma obra escrita ainda no século XIX, foi iluminado nessa esteira por um país de ideias coloniais, baseado no trabalho escravo, posteriormente aos valores de uma civilização burguesa, conservadora e formal”. Logo, não se poderia dissociar o aspecto jurídico do social, por ser o primeiro, reflexo do segundo.
A sociedade brasileira à época que antecedeu à confecção do Código Civil era formada em sua maioria por escravos, índios, familiares de proprietários de escravos, pobres, ex escravos e outros menos favorecidos, cujos interesses não foram abarcados pela legislação vindoura, visto que, de acordo com o explicitado por Felipe Camillo Dall’ Alba, “tratava-se de um sistema fechado contendo disposições que interessavam à classe dominante...deixando à margem institutos que não quer ver disciplinados, por exemplo, o direito indígena”. E por que não falar do direito dos negros?
Outro ponto de extrema relevância apresentado pelo pesquisador acima mencionado é a ausência de amadurecimento social da época, mesmo após o fim da escravidão, amadurecimento este que só ocorreu após a 2ª Guerra Mundial, com a industrialização.
Diz-se que o Estado não exercia como deveria o seu papel, pois garantia o direito de apenas uma pequena parcela social: a burguesia. Durante décadas a assistência social, por exemplo, que atualmente é papel do Estado, inclusive disciplinado e regulamentado em leis, face às camadas menos favorecidas, foi desenvolvida de forma filantrópica por instituições ligadas à Igreja Católica. Nenhum direito era garantido pelo Estado da forma como se vê hoje.
Embora se constate uma tentativa maior em se aproximar ricos e pobres, com o advento da Constituição democrática de 1982, não resta dúvida que as leis do país beneficiam a classe mais favorecida e que favorece uma dissolução entre a elite dominante e a outra grande massa da população. Com essa afirmação não se pode dizer que o Código Civil de 2002 também retrata o espírito democrático garantido pela Constituição de 1988, visto que muitos institutos do antigo Código continuaram vigente, apenas com algumas modificações e após as breves considerações feitas já se constatou que seu alvo não eram todos os cidadãos por não ser, nem todos os habitantes do país daquela época, considerados como tal.

3 DA COMISSÃO PARA ELABORAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 (LEI 3.071 DE 01.01.1916)

Com o fim da escravidão e o início da República, deu-se a necessidade de confecção de leis para garantir proteção as várias classes surgidas. As relações pactuadas entre as pessoas, a classe de trabalhadores assalariados e os negócios jurídicos firmados necessitavam de proteção jurídica que até então não era garantida por qualquer meio estatal que refletisse a necessidade local, haja vista que a legislação vigente era as Ordenações Filipinas do Reino que não tinham mais aplicabilidade nem dentro do próprio território luso em razão de novas legislações surgidas.
Na visão de Spencer, sintetizada por Orlando Gomes:
(...) os Códigos devem ser obra de compromisso e transação e, revelando o seu pensamento quanto à imaturidade do meio para incorporar as novas ideias, adverte que as codificações devem ser trabalho de depuração, de condensação, de enfeixamento, de classificação, de metodização e nunca de aventurosos trânsitos por sendas mal desbravadas. No seu entender, o dever do codificador, diante das novas formações, é o de lhes deixar o caminho aberto para que se desenvolvam e preencham a função social a que se destinam.

Ora, diante dessa afirmação e se for traçado um paralelo com a sociedade acima descrita no momento da confecção do Código Civil é perigoso afirmar que os interesses de todas as classes foram ali tratados, além do mais as informações históricas constatam que no Século XIX muitas nações, principalmente as Europeias elaboraram seus códigos e eles foram iluminados pelas ondas vindas da França com a Revolução Francesa, por exemplo, que não foi um movimento organizado por pobres e ex escravos, e sim por burgueses, latifundiários e pensadores da época, que viveram aquela realidade e aquele momento, além de não conservarem o título de país escravagista como o Brasil conservou e conserva.
Pode-se dizer que com tantos anos de comercialização e escravização o Brasil conseguiu um amadurecimento social apenas após a Segunda Guerra Mundial. Essa ideia é bem refletida nas palavras de Orlando Gomes acerca da codificação no nosso direito brasileiro:
O retardamento na organização do Código Civil brasileiro permitiu que esse divórcio entre o Direito teórico e o prático não fosse tão profundo ente nós, como foi em outras nações do continente. Mas, ainda assim, a alienação constituiu frequente recurso do legislador para dotar o país de uma legislação que nada ficasse a dever aos Códigos mais modernos. Em várias disposições, é mais uma expressão de ideias do que de realidades.

4 AS CONSTITUIÇÕES E A LEI PRIVADA

Durante esse processo histórico de exploração econômica e humana, supressão da história do povo oprimido, destruição de seus monumentos, queima de documentos históricos, além da imposição do aprendizado de uma cultura diversa restou para os negros a liberdade aparente, após a abolição com a Lei Áurea (Lei 3.353 de 13 de maio de 1888).
A causa disso foi a inexistência de um campo social e econômico previamente preparado para a grande massa de negros e mestiços dita “livre”. Esses povos somavam um expressivo número de analfabetos sem direitos e a sociedade onde viviam não lhes oferecia lugar em razão de já estar previamente estabelecida e articulada, mantenedora de seus próprios privilégios.
As Constituições que vigeram após o fim da escravidão pouco ou nada tratavam sobre o assunto, no que se refere à concessão igualitária de direitos nas esferas civil, social e penal, já que as que vigeram antes e depois da Lei Áurea se preocupavam com interesses ligados à classe latifundiária e instituía, como na de 1824 até castigos físicos para os negros, conforme a conveniência do seu “dono”.
Em 1946 fala-se do início da efetiva democracia em razão da pregação do princípio de igualdade para todos, porém não explicitava, tal como atualmente, que todos eram iguais perante a lei, independentemente de raça.
Enquanto na Europa já se falava em direitos humanos, direitos fundamentais a realidade local era de uma sociedade escravagista com interesses essencialmente privados.
Orlando Gomes chama atenção para um fato importante: o Brasil importou o modelo democrático da Europa. Porém, a introdução de legislação referentes a matérias acerca de temas sociais não tiveram reflexo no Brasil. A mentalidade dominante conservava o individualismo jurídico, ou seja, prevalecia o que realmente interessava aos detentores do poder.
Sintetizando esse pensamento, ainda nas palavras de Orlando Gomes:
Verifica-se, em suma, na evolução legislativa do Direito privado brasileiro, aquele descompasso entre o Direito escrito e a realidade social (...). O Código Civil colocou-se, em conjunto, acima da realidade brasileira, incorporando ideias e aspirações da camada mais ilustrada da população.

5 CONCLUSÃO

Diante disso conclui-se que o Estado formado pelas mentes legiferantes da época não exerceu seu papel pleno em razão de conferir amparo legal e privilégios apenas a uma pequena parcela social. A grande massa de pobres negros advinda com o fim da escravidão ficou à mercê da sorte, ficando conferido à igreja católica o papel filantrópico de garantir assistência a essa camada menos favorecidas, o que hoje é dever do Estado, promovido pela Assistência Social, direito hoje garantido constitucionalmente.
Impossível se conceber igualdade de direitos em um Brasil que viveu décadas de exploração econômica e humana, cujas estratégias de dominação incluíram dentre outras coisas, a supressão da história do povo oprimido, sendo a abolição considerada uma liberdade duvidosa, já que sem amparo do governo muitos escravos se viram forçados a retornar à casa do seu antigo senhor.
Não é possível acreditar diante desse quadro social e da lei pura confeccionada que houve mudança. Na verdade, a mudança é paulatina e se verifica de forma branda, tal como o fim da própria escravidão, que demorou muitos anos.
Importar um modelo democrático trazido de outro país também não é a forma mais adequada de retratar uma sociedade recém-abolicionista, haja vista que cada sociedade tem a sua própria realidade e como consequência dela, o seu próprio direito.
Logo, é verdade que o Brasil viveu muito tempo sob a égide das leis vindas do país colonizador e viveu, após a construção do Código Civil de 1916 com a impressão de ser ele uma construção genuinamente local, adequada e pensada para essa realidade.
Todavia, se o seu fundamento se espelhou em uma realidade alheia à local, conclui-se que há um descompasso entre as aspirações do povo e o direito escrito, já que o direito incorporou ideias e aspirações burguesas por ter sido iluminado por elas quando importado da Europa com o advento das Revoluções, além de não enquadrar socialmente uma realidade por ela própria criada, que foi a diversidade de raças surgidas no país com a chegada dos negros africanos.
Esse povo contribuiu e fez parte do perfil social tido atualmente. Se tornaram filhos dessa pátria quando aqui chegaram e dela fizeram parte e fazem até hoje com seus descendentes, entretanto em razão da forma como eram considerados (mercadoria de valor e comercialização) dificultaram a feitura de leis locais em razão do difícil enquadramento deles na sociedade (pessoas que não eram pessoas). Se não eram pessoas, o direito, então não lhes serviria.
Assim sendo, a problemática foi esquecida, escondida e postergada por muitos anos, pois se tratava de terreno pantanoso, daí o porquê do atraso na feitura da lei brasileira. Pode até ser que se pretendesse uma neutralidade no tocante à sociedade vigente e os anseios burgueses, mas certamente quando terminado não se limpou do revestimento conferido pela elite, pois já nasceu em mora com a realidade e com ao povo ao qual se destinava.

REFERÊNCIAS
BORGES, Maria de Fátima. Capacitação dos Conselheiros do Conselho Municipal de Assistência Social de São Gonçalo do Amarante-RN: uma contribuição para o fortalecimento do sistema descentralizado da Assistência Social. Monografia. Natal: Faculdade de Ciências, cultura e Extensão do Rio Grande do Norte (FACEX).

DA SILVA, Marco Antônio Marques; MIRANDA, Jorge. Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. 2ª Edição. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2009.

DALL’ALBA. Felipe Camilo. Os três pilares do Código Civil de 1916. Disponível em <HTTP://tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos)>. Acesso em 8/7/2012.

DE MATOS, Clarice José; NUNES, César. Novo Manual de História do Brasil. São Paulo: Ed. Nova Cultural. 1993.

DOWER, Nélson Godoy. Direito e Legislação. 3ª Edição. São Paulo: Ed. Atlas. 1996.
ESCRAVIDÃO. Disponível em <HTTP://pt.wikipedia.org./wiki/escravidão>. Acesso em 08/07/2012.

GOMES. Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil Brasileiro. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006. 
RIBEIRO, Maria Thereza Rosa. Itinerário da Construção do Risco e Segurança na Sociedade Brasileira. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sc_artex&pid=s0102-69922006000300009>. Acesso em 08/07/2012

WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 2 Edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense.